por Paulo Emílio Sales Gomes
Durante os últimos quarenta anos, nunca faltaram jornalistas empenhados em fazer a promoção do cinema brasileiro. Essa atividade, porém, não refletia desejos manifestados por algum setor considerável da opinião pública. O hábito do cinema foi adquirido entre nós pelo consumo de filmes estrangeiros. A quantidade e a qualidade do produto nacional foram sempre modestas e jamais adquiriram o caráter de continuidade que condiciona a procura de qualquer mercadoria. O público brasileiro adotou inteiramente os heróis, os temas, os sentimentos e as paisagens do filme importado, e não sentia falta do cinema nacional.
A ação dos cronistas tinha uma natureza militante, eles procuravam inculcar nos espectadores uma consciência cinematográfica nacional. As armas empregadas eram os apelos, como o célebre e pouco seguido slogan de Pedro Lima: “Toda fita brasileira deve ser vista por todos”. As campanhas destinadas a inflamar a imaginação do leitor e mobilizar sua vontade frequentemente perdiam pé na realidade. Qualquer acontecimento de maior relevo, como a construção de um estúdio ou os projetos de uma nova companhia, era interpretado como perspectiva de vir a ser o Brasil em breve um sério rival de Hollywood.
O fervor, a veleidade e a inocência dos cronistas os aproximavam muito do mundo de ficção dos produtores cinematográficos. Eram, aliás, muitas vezes os mesmos homens, quando não no espaço, no tempo. O núcleo de jornalistas militantes em prol da cinematografia brasileira foi tradicionalmente constituído por cronistas que haviam sido produtores ou que aspiravam a sê-lo. Apesar da diferença de tom — os primeiros com o amargo travo da frustração e os outros animados por otimismo ainda não experimentado — participavam todos em medida igual do tecido de irrealidades que embaraçava qualquer ação lúcida e consequente em favor do cinema brasileiro.
A mudança da situação, no fim da década de 1940, não foi resultado do aparecimento de melhores ideias baseadas em análises pertinentes da realidade cinematográfica brasileira. O papel vanguardista foi assumido pelos fatos. A fundação da Vera Cruz trouxe no bojo de suas contradições a possibilidade de melhoria do pensamento sobre a cinematografia no Brasil.
É curioso constatar as similitudes entre a grande aventura cinematográfica paulista de há onze anos e alguns empreendimentos do passado, não as tentativas relativamente ambiciosas de Ademar Gonzaga ou Carmem Santos, mas os tímidos ensaios de Francisco Santos na Pelotas de antes da Primeira Guerra Mundial ou de Amilar Alves em Campinas, nos primórdios dos anos 1920. Deve ser salientado o fato do pelotense, do campineiro e do ítalo-paulistano Franco Zampari serem igualmente pessoas que desejaram passar da produção teatral para a cinematográfica. A produção e a difusão de uma peça de teatro fazem parte de um mesmo movimento. Uma peça montada entra automaticamente em contato com seus consumidores. Tanto Zampari quanto seus humildes predecessores tinham uma grande confiança no escoamento quase automático da fita desde que esta estivesse pronta. Estavam no fundo convencidos de que as salas de cinema existem para passar qualquer filme. Não sentiam até que ponto a produção, a distribuição e a exibição de filmes são atividades solidárias. No campo cinematográfico em qualquer momento dado, a indústria e os setores atacadista e varejista do comércio constituem, apesar da proliferação de iniciativas aparentemente independentes, um todo uno, sólido e coerente. Um produtor que surja apenas como tal perturba a harmonia preexistente e é acuado a soluções de emergência para difundir suas fitas. Esses recursos são sempre deficitários e tendem a excluir o produtor, como um corpo estranho, do mundo cinematográfico real. O gesto de Francisco Santos, entregando em 1913 O crime dos Banhados a um caixeiro-viajante inidôneo que percorria o interior do Rio Grande do Sul, prenuncia a entrega, quarenta anos depois, da produção da Vera Cruz a uma distribuidora que não tinha a mínima razão de interessar-se pelo florescimento da firma brasileira.
O que levava as pessoas à resolução de produzir filmes era frequentemente um estímulo imediato e enganador. Em 1912, obtinha-se facilmente no Brasil filme virgem e máquinas de filmar a preços razoáveis. Essa circunstância animou Francisco Santos e muitos outros, mas dois anos depois, mesmo que estivessem dispostos a continuar produzindo, e não era o caso, isso não teria sido possível em razão da absoluta penúria de filme virgem. A irrupção em torno de 1950 da Vera Cruz, Maristela e Multifilmes foi provocada por uma lei do Congresso Nacional que concedia grandes facilidades para a importação de equipamentos destinados a estúdios. Contudo, logo em seguida o Poder Executivo congelava o preço das entradas de cinema numa modalidade que, conforme veremos oportunamente, prejudicava exclusivamente o filme brasileiro.
O malogro da Vera Cruz e dos outros dois consideráveis empreendimentos paulistas não conheceu, como as tentativas anteriores, a melancolia suplementar de passar quase despercebido. O vulto do acontecimento impressionara os espíritos, e o protesto pelo que estava acontecendo não ficou apenas registrado na amargura de algumas crônicas jornalísticas. Num grande número de reuniões públicas, críticos, técnicos e artistas procuraram debater o problema, e seu esforço encontrava eco na imprensa de informação e em amplas camadas da comunidade. Não estávamos mais diante de um esforço isolado de cronistas, mas de uma verdadeira corrente de opinião. Persistiam, no entanto, a debilidade e a confusão das ideias. O comunismo era então uma presença viva na sociedade brasileira e dava o tom aos diferentes movimentos em favor do cinema nacional. Acontece que a compreensão do que se passa no mundo real nunca foi o ponto forte dos comunistas brasileiros. Eles limitavam-se a aplicar ao terreno cinematográfico os esquemas e fórmulas de denúncia então em curso. Falava-se muito em imperialismo, mas em nenhum momento foi esclarecido, mesmo parcialmente, o sistema que sufoca o desenvolvimento do cinema nacional.
Na verdade, não havia nos referidos congressos e conferências clima para o exercício de um pensamento propriamente racional. Como os dados exatos das questões em pauta eram ignorados, tudo banhava numa atmosfera de mistério, no sentido mágico da expressão. Os interesses estrangeiros eram praticamente definidos em termos de espíritos maléficos, poderosos, onipresentes e ambíguos ou então encarnados por tal personalidade política brasileira ou um funcionário de empresas americanas. Os discursos, declarações, manifestos e moções não tinham a natureza de um empreendimento lógico, tratava-se de exorcismos. Essas diferentes manifestações públicas da primeira parte da década de 1950 eram reflexos do passado, as últimas e mais vigorosas afirmações do mundo fictício no qual se envolvera desde o começo do século o empreendimento cinematográfico brasileiro.
As ideias que iriam marcar o futuro próximo, isto é, o nosso presente, nasciam no processo de declínio da Vera Cruz. A Companhia arregimentara grande número de funcionários brasileiros e estrangeiros. No ambiente de crise que logo se manifestou, um publicista brasileiro e um cinegrafista francês tiveram a curiosidade aguçada no sentido de melhor compreender as motivações mais gerais do que estava sucedendo. Ambos provavelmente sempre tiveram certo gosto pelos assuntos econômicos e administrativos, mas nem Cavalheiro Lima ou Jacques Deheinzelin tinham se preparado para o relevante papel que acabaram assumindo no panorama cinematográfico nacional. As descobertas iniciais não foram, aliás, o fruto de um estudo deliberado. Se tivermos que escolher a data do nascimento de uma nova mentalidade cinematográfica brasileira, penso que devemos fixar a tarde em que Cavalheiro Lima folheava um número do Motion Picture Herald, nos escritórios da rua Major Diogo, enquanto esperava o momento de ser recebido por Franco Zampari. Apesar de conhecer mal o inglês, sua curiosidade foi despertada por umas linhas a respeito do Brasil em que se falava do sistema de exportação dos lucros das companhias cinematográficas estrangeiras. Como justamente Chick Fowle saía da sala de Zampari, Cavalheiro Lima pediu-lhe que traduzisse aquela passagem. Foi através de meia dúzia de linhas de uma revista corporativa americana, transpostas em português incerto por um cinegrafista inglês, que se teve a revelação inesperada de que o Brasil subvencionava a produção cinematográfica estrangeira.
Um fato novo da maior gravidade veio atualizar dramaticamente a discussão do problema cinematográfico brasileiro. O Congresso Nacional teria aprovado um projeto de lei que autoriza a dublagem em língua portuguesa dos filmes estrangeiros exibidos no Brasil. A notícia é tão inesperada e pouco sensata que preferimos a ela nos referir no condicional, enquanto não tomarmos conhecimento dos termos exatos do documento aprovado na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado. A implantação da dublagem seria o pior ato já praticado pelas nossas autoridades públicas contra a arte cinematográfica em geral e contra a cinematografia brasileira, em particular.