Enquete da revista Filme Cultura
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Esta é a segunda de duas enquetes realizadas no biênio1966/1967 pela principal revista de cinema publicada no Brasil por quase duas décadas, a Filme Cultura. Semana passada, postamos a primeira parte aqui no Teoria Brasileiro do Cinema.
Em pauta nas enquetes estava o ainda candente debate sobre a ascensão do Cinema Novo, que polarizou as discussões sobre a criação cinematográfica no país durante todo o decênio de 1960. O que torna estas enquetes documentos notáveis é o fato de nos revelarem a dimensão da controvérsia entre os importantes críticos que a responderam. Na querela do Cinema Novo, o consenso era pouco e esparso no que diz repeito à avaliação crítica de obras e diretores e aos quadros que compunham o movimento (a própria denominação de “movimento” foi também, por vezes, questionada).
A estrutura da enquete é bastante simples: cada crítico respondeu às mesmas sete perguntas apresentadas logo no início do texto. Para facilitar a compreensão, repeti as questões na seção dedicada às respostas de cada crítico (não há tal reiteração na edição original). Esta segunda enquete, contou com respostas dos críticos:
Alberto Shatovsky (nascido em 1932; crítico e curador das primeiras salas dedicadas ao “cinema de arte” no Rio de Janeiro),
Alfredo Sternheim (nascido em 1942, paulistano; crítico de cinema e, mais tarde, cineasta da Boca do Lixo),
José Júlio Spiewak (nascido em 1931, polonês radicado em São Paulo; ator e crítico de cinema no Diário de São Paulo),
e Ely Azeredo (o crítico que cunhou o termo “Cinema Novo”; escreveu na Tribuna da Impensa, no Jornal do Brasil e em publicações diversas).
O texto a seguir, vale lembrar, consta no acervo oficial da Filme Cultura (disponível aqui para livre acesso). Compartilho uma transcrição atualizada conforme o atual padrão ortográfico para maior facilidade de leitura e melhor acessibilidade geral a este importante documento.
Uma excelente leitura a todos!
Prosseguindo a enquete iniciada no último número, os pontos de vista de dois críticos de São Paulo e dois do Rio, que se manifestam sobre o Cinema Novo brasileiro, suas características e valores, sua natureza e suas dimensões. O confronto de depoimentos — já publicados os de Salvyano Cavalcanti de Paiva, Antonio Moniz Vianna e José Lino Grünewald — tende a equacionar uma questão sempre colocada em termos controversos e polêmicos.
Como explica o nascimento do Cinema Novo?
Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Alberto Shatovsky
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
A denominação não importa. O fato é que uma geração despertou para o cinema, inquieta e inconformada, petulante até. Foi forjada na crítica e na militância cineclubística, tendo sentido, num determinado momento, a necessidade de assumir o instrumental fílmico. O cinema brasileiro seguia seu curso rotineiramente, desprezado pelas elites, desmoralizado, sem nada ser além de entretenimento destinado às platéias fáceis. Uma jovem geração de cineastas veio romper com essa insuficiência integrando o cinema brasileiro à nossa cultura. A ruptura foi violenta e o públicou sentiu a transformação. Demorará algum tempo até que as plateias se convençam de que há uma inteligência cinematográfica brasileira, como na França, Itália e nos Estados Unidos. Essa inteligência é sensível ao homem brasileiro, aos seus problemas, dúvidas e incertezas, e a ela cabe trazer à tela nossa problemática, como um espelho da vida social do país, servindo-se de uma linguagem compatível com o espírito novo desses cineastas recém-chegados.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Encaro o Cinema Novo como um movimento revisionista, com o papel básico de trazer uma modificação de conceitos. Uma escola implica em postulados, e o Cinema Novo vive muito de intuição, de diversidade criadora, ainda sob um clima de fermentação. O tempo virá trazer a consistência e a segurança indispensáveis aos cineastas que ainda carecem de convivência maior com o instrumental que tão cedo lhes foi posto nas mãos.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Em 1955, Rio, Quarenta Graus, de Nelson Pereira dos Santos, foi novíssimo, Agora, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, faz História. E porque não citar Menina de Engenho, de Walter Lima e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos? E há muitas experiências bem-intencionadas e malsucedidas nesses tão úteis quanto agitados anos em que se procura consolidar um aspecto da produção brasileira, sem negar outras tendências igualmente válidas e importantes.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
Michel Audiard, o conhecido dialoguista francês, que vai agora dirigir o seu primeiro filme, declarou, em recente entrevista, que o único filme novo que ele conhecia é Cidadão Kane, de 1941. Há um exagero evidente do Sr. Audiard. O filme de Orson Welles permanece novo até hoje, mas o cinema registra, em momentos históricos diferentes, as mais diversas contribuições. Quem irá negar a validade do neorrealismo italiano do pós-guerra? E quem recusará encarar a contribuição de Resnais com Hiroshima, Meu Amor, ou a intervenção de Kurosawa e de outros japoneses, as de Munk, Wajda, Weiss, Polanski, Rouch, Rogosin, Reichenbach? Particularmente em relação ao Brasil, o chamado Cinema Novo é uma contribuição decisiva para a revelação de uma consciência de cinema que tardava a chegar. Mas, em última análise, novo será todo aquele cinema nacional que entre em conflito com o velho e o vazio.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
A crítica é cada vez mais atuante na medida em que mantém aceso o diálogo com os realizadores e produtores. E nunca, como agora, observou-se uma participação tão intensa da crítica na discussão dos problemas do filme brasileiro, especialmente em relação ao trabalho dos jovens cineastas.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
O diálogo ainda é feito em surdina. O público custa a crer no cinema brasileiro, e vai comparecendo aos poucos. É indispensável que se criem circuitos de exibição especializados e se torne mais sistemático e organizado o encontro do público com o Cinema Novo. Digo isso porque é preciso partir para a conquista, primeiro, das melhores categorias de público. Acredito na necessidade de concentrar as plateias melhores, através de lançamentos mais sistematizados.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Cineastas: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr., Joaquim Pedro, Ricardo Aronovich, Gustavo Dahl, Arnaldo Jabor, Paulo Gil Soares, entre outros. São nomes que vêm se juntar às expressões mais categorizadas do filme brasileiro, como Walter Hugo Khouri, Roberto Santos, Roberto Farias, para citar apenas três cineastas de bom métier.
Alfredo Sternheim
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
Cinema Novo é o rótulo que deram a um grupo de filmes e elementos surgidos por volta de 1958/59. Nasceu tendo em vista uma necessidade de brilho que seria difícil de ser obtido individualmente, mas fácil num agrupamento como o que surgiu, e que entre 1960 e 1964, principalmente, encontrou vasto apadrinhamento em entidades oficiais (o Itamarati, a Cinemateca Brasileira), em detrimento das reais necessidades do cinema brasileiro.
Cinema Novo é também consequência da mania de nacionalismo que sempre assolou a cultura no Brasil. O exotismo do tipo Caiçara, O Canto do Mar, O Cangaceiro, foi revestido de novas fórmulas folclóricas bem mais astutas, que se utilizavam de jargões pseudo-socialistas. Essa insistência numa coloração ideológica e num falso populismo-nacionalista se fazia presente também numa ampla atividade teórica que se processava paralelamente e que, entre outras coisas, apregoava o desprezo pelo artesanato.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Trata-se de um movimento que também teve como modelo a Nouvelle Vague. Seria uma escola se houvesse, em meio disso tudo, um sentido de pesquisa estética ou a aplicação de novas formas cinemáticas, como ocorreu no Expressionismo.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Até 1964, o Cinema Novo tendia para o falso esquerdismo nacionalista e o desmazelo fílmico. Nesse sentido, os exemplos mais marcantes são Cinco Vezes Favela, Barravento, Canalha em Crise, Garrincha e Sol Sobre a Lama. As exceções são Os Cafajestes e Porto das Caixas. Outras fitas apresentavam alguns valores isolados, mas comprometiam-se em conjunto diante do teor panfletário.
Posteriormente, os diretores do movimento pareceram denotar coragem de se manifestarem individualmente, sem nenhum apego a orientação comunizante. Assim surgiram filmes auspiciosos como O Padre e a Moça, A Hora e Vez de Augusto Matraga e Menino de Engenho, embora não estivessem isentos de defeitos. É o caso, ainda, de São Paulo Sociedade Anônima, que acabou sendo encampado pelos teóricos do movimento e de O Desafio que resultou numa crônica-crítica, numa espécie de Vie Privée do peculiar clima de frases feitas e falsas preocupações sociais criado pelo Cinema Novo.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
Sua significação se restringe somente ao campo cinematográfico do Brasil, embora tenha havido êxitos no Exterior. Mas quanto à nossa produção, essa mesma significação não foi das mais positivas. A agressividade, o clima de terror cultural criado pela maioria dos teóricos e ensaistas desse movimento — e como exemplo temos certos críticos que convidavam determinados diretores a desistir de fazer cinema, pelo fato de seus filmes não refletirem de maneira evidentemente regionalista a realidade social do Brasil —[,] o protecionismo que funcionou e ainda funciona nas organizações de retrospectivas e em outros setores, os degladiamentos provocados, apenas favoreceram um ambiente desanimador, sobretudo para artistas mais sensíveis ou artistas em formação, dotados de forte individualidade.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Não, na maioria das vezes, já que obedece a um nocivo espírito gregário, presente nos setores responsáveis pela difusão da cultura cinematográfica brasileira. Essa cumpinchagem, esse processo de envolvimento pessoal — que chega a ser a única atividade de certos elementos que com esse fito vão para o Exterior sob as expensas do Governo Federal — acabaram por fazer com que muitos críticos deixassem de lado o ecletismo necessário a tal função, a coerência que apregoavam e que tinham obtido em vários anos, para deixarem-se levar pela simpatia pessoal dos realizadores. Nesse setor de crítica, só houve algumas exceções que sempre analisaram as películas com profundidade e empenho.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
Nulo, se levarmos em conta as rendas. Embora apregoassem fazer filmes para despertar a consciência social do povo — fato que até agora não se deu — o caso é que salvo Os Cafajestes e Menino de Engenho, nenhuma produção “cinemanovista” obteve bom êxito comercial. Isso também se deve à falta de acabamento técnico-artístico que predominava na maioria dessas fitas. E são poucos os diretores que sabem contar história. Carecem de clareza. Por isso, a comunicabilidade almejada ainda não foi conseguida.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Ruy Guerra, Paulo César Saraceni e Walter Lima Júnior, entre os diretores. Antônio Sampaio, Lídio Silva, Leônidas Bayer, Anecy Rocha e Paulo José, entre os intérpretes. Se levarmos em conta fitas e elementos surgidos antes ou à margem do movimento, mas depois encampados, merecem referência Trigueirinho Neto, Roberto Santos e Luiz Sérgio Person.
José Júlio Spiewak
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
No Rio de Janeiro só se faziam então chanchadas. Em São Paulo, já se havia desenvolvido um movimento cinematográfico mais sério, mas, ao mesmo tempo, também se continuava ainda a fazer chançhadas ou semichanchadas e, na esteira do inoportuno êxito de O Cangaceiro, desenvolvia-se toda uma série de imitações deste filme, o que implicava num extremado provincianismo para tudo o que viesse a ser feito sob essa diretriz. A esse provincianismo, incrivelmente, havia pretensos intelectuais que apoiavam, referindo-se a ele como “descoberta de caminhos para o cinema nacional”. Alegavam batalhar por “um cinema genuinamente brasileiro”. Os que fizessem ou pensassem em fazer um filme em dimensão universal, eram alvo de despeitos, e estes vieram a ser causa em comum para os que julgavam que só com chanchadas obteriam compensação financeira e os pseudonacionalistas que defendiam cangaceirismos. A esses juntaram-se alguns cineclubistas da velha guarda de São Paulo, que tinham em mãos uma Cinemateca que havia, em má hora, conseguido ser reconhecida oficialmente como “entidade cultural”, e que, por nunca terem conseguido eles mesmos fazer cinema, tinham todo um mórbido ciúme de quem o fizesse em São Paulo, principalmente se fosse cinema de qualidade que pudesse vir a ser reconhecido como tal. Uma simples recapitulação de diversos dos seus atos mostra que eles queriam que não mais houvesse cinema em São Paulo, para que a única importante instituição cinematográfica dessa cidade fosse a sua Cinemateca, à custa da qual eles pudessem passar pelas mais importantes pessoas do ambiente cinematográfico.
Todos esses rancores, ressentimentos e complexos de inferioridade acumularam-se contra os três filmes brasileiros mais adultos dos fins da década de 50 — Estranho Encontro, Ravina e Na Garganta do Diabo —[,] contra os quais as mais desenfreadas campanhas passaram a ser desencadeadas, todas elas com objeções as mais primárias.
Era a época em que começava a se alastrar o processo de peleguização e fidelização de nosso País, que iria ser erradicado a 31 de março de 1964. E, de orientação esquerdista, ou mais certamente festivo-esquerdista, eram alguns oportunistas que queriam se fazer cineastas a qualquer custo, em média, como se pôde ver aos poucos, elementos que não tinham muito a dizer para sentirem necessidade de o porem em imagem cinematográfica, mas tinham simplesmente a veleidade de estar no cinema. O pseudonacionalista em moda se tornando instrumento das esquerdas. Para os despeitados cinematecários paulistanos, era oportunidade única para dar vazão aos seus despeitos. Ao apoiar candidatos a cineastas que viessem a se promover fora de São Paulo, que além do mais fariam campanha contra o cinema de São Paulo, afirmariam sua pretensa posição de autoridade suprema em questões cinematográficas de São Paulo e, sendo em média muito jovens os novatos que a apoiariam, também com muita facilidade se afirmariam como mentores intelectuais destes, com o que compensariam sua frustração por nunca terem sido eles capazes de sequer tentar fazer seus filmes.
No Itamaraty, elementos esquerdizantes se achavam infiltrados em alta escala.
Foi assim que vários filmes (A Grande Feira, Barravento, Cinco Vezes Favela, Gimba, Garrincha, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol) puderam ser feitos, já sabendo de antemão seus realizadores que, com alguma dose de provincianismo, e ao incluir alguns sovados chavões esquerdistas, automaticamente teriam prioridade no Itamaraty para serem enviados a qualquer festival cinematográfico no estrangeiro, uma certa cinemateca paulistana iria lhes dar toda a cobertura, cinéfilos esquerdistas e festivo-esquerdistas iriam fazer-lhes coro, e outros cinéfilos ainda receariam apontar os eventuais defeitos de seus filmes, assim como, no conto de Andersen A Roupa Nova do Imperador, a multidão não teve coragem de dizer como o monarca se encontrava realmente trajado.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Creio que não chega a ser nem uma coisa nem outra.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Na sua pretensão improcedente — Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol. No seu primarismo de ideias — Canalha em Crise. No que esse slogan poderia insinuar de verdadeiro — Os Cafajestes, Porto das Caixas e O Desafio.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
Não tem significação sequer na produção nacional. Só tem servido para espalhar princípios errados pelo nosso cinema e para mover acirradas campanhas de depreciação e até de insultos contra quem não siga esses princípios. Naturalmente que, entre os pretensos “gênios” do “cinema novo”, acabaram se revelando alguns que, apesar dos princípios errados de que partiam em teoria, revelaram-se na prática cineastas de valor. Exceções que confirmam a regra.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Infelizmente, uma boa parte da crítica apoiou indevidamente o “cinema novo” justamente nos seus filmes em relação aos quais menos deveria tê-lo feito — Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol — que foram unicamente os mais habilidosos para fazer seu alarde.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
Todo e qualquer diálogo entre cinema novo e público praticamente não existe. Todos os filmes do cinema novo, sem uma única exceção, têm sido os mais redundantes fracassos de bilheteria.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
As exceções que confirmam a regra: Ruy Guerra e Paulo César Saraceni.
Ely Azeredo
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
Em O Novo Cinema Brasileiro (Filme & Cultura nº 1) respondo com vagar a esta pergunta. Desde então, porém, encontrei motivos para delimitar com maior rigor — para análise crítica — o Cinema Novo. As fronteiras do cinemanovismo serão naturalmente imprecisas durante muito tempo. Só as próximas realizações de Luiz Sérgio Person, por exemplo, dirão se este realizador paulista, que se iniciou na longa-metragem com São Paulo Sociedade Anônima (filme no qual alienação social e alienação existencial se interpenetram em um personagem concebido e interpretado lucidamente) é um artista não comprometido com formas ideológicas e estéticas ou se, não resistindo à gravitação dominante no cinema brasileiro mais empenhado, aderirá às coordenadas do Cinema Novo.
Já seria impossível arrancar o marco inicial do Cinema Novo, que se enraizou em Rio 40 Graus, tosca e primitiva ressonância do neorrealismo italiano. O Cinema Novo nasceu com a obra de Nelson Pereira dos Santos, de um impulso principalmente político, esquerdista; de uma esquerda que se revelava tão radical no repúdio à estrutura social vigente, quanto na ingenuidade de uma poesia identificada a priori com os personagens marcados pela miséria ou, simplesmente, por dificuldades de vida (que, aliás, também afetam terrivelmente a classe média) na megálope carioca. NPS insistiu (até as vésperas do surpreendente Vidas Secas) na herança mais bitolada do neorrealismo: miraculosamente, a competição burguesa não se reflete em seus personagens-vítimas, como se burguesia e camadas menos favorecidas vivessem em planetas diversos.
Sem negar personalidade brasileira ao Cinema Novo, vale dizer que alguns fatores de seu aparecimento são comuns a vários movimentos estrangeiros, como o Free Cinema inglês e a Nouvelle Vague francesa: fuga do público à produção corrente, em virtude da oferta gratuita de espetáculos do mesmo nível ou superiores na televisão; pressão dos elementos originários da crítica, da curta-metragem e dos cineclubes, em demanda de postos na direção de longa-metragem; trabalho sistemático da crítica por uma renovação radical nos temas e na forma de abordá-los.
Fatores característicos da situação brasileira: (a) a crescente efervescência cultural, que atingiu o teatro antes de chocar-se contra a ignorância e o conformisno da maior parte dos elementos dos antigos quadros profissionais de cinema; (b) o interesse das novas gerações pelos problemas culturais e políticos, manifestando-se principalmente pelo caminho nacionalista, e revoltando-se, muitas vezes de maneira obscurantista, contra a exígua substância nacional da produção cinematográfica — marcada, na maioria das tentativas sérias, por saudosismo do silencioso ou excessiva adesão a recursos formais importados sem reelaboração.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
O Cinema Novo é um movimento. Os cineastas sob o rótulo defenderam em inúmeras oportunidades a validez de sua indefinição, o “flou” de suas fronteiras. Na verdade, quem aceitasse as marchas e contramarchas de seus chefes-de-fila em relação a um Ruy Guerra, a um Roberto Farias, a um Anselmo Duarte, não conseguiria delimitar os objetivos, as linhas mestras e as tendências dominantes do Cinema Novo. Sempre vi o Cinema Novo como um movimento. A certa altura, pareciam enquadrar-se nesse movimento autores de filmes dotados de reivindicação social e/ou espírito de revolta, e empenhados em inovar os métodos de produção e/ou a linguagem. Mas Roberto Farias satisfazia o requisito social com Assalto ao Trem Pagador e Selva Trágica, sem fugir a uma linguagem estabelecida, às normas básicas do cinema à americana. E Anselmo Duarte, também abordando temas de reivindicação social, era francamente acadêmico em O Pagador de Promessas e fazia teatro filmado com certas doses de sofisticação formal em Vereda da Salvação. Recusamos, em consequência, a natureza cinemanovista de Duarte, defendida por alguns críticos, e a integração de Farias, apoiada também, por motivos extracríticos, por vários animadores do movimento, Discordo de José Lino Grünewald quando diz que o Cinema Novo não pode ser classificado de movimento por falta de proposição (ou “plataforma”) à sua raiz. Pelo contrário, vejo excesso de proposições (basta consultar os arquivos de O Metropolitano, Suplemento Literário do Jornal do Brasil, revista Senhor, Revista Civilização Brasileira) e sustento que as contradições e o confusionismo não anulam a validez de certas constantes. Se procurarmos as constantes dos melhores filmes de Glauber Rocha, Leon Hirzman, Nelson Pereira dos Santos, Carlos Diegues, Roberto Santos Joaquim Pedro de Andrade, veremos que não é gratuito definir linhas mestras que situam (ainda que insuficientes como definição) um movimento.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Os melhores exemplares do que considero essencial no Cinema Novo: Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, A Hora e Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, A Grande Cidade, de Carlos Diegues. Não me refiro ao panorama da curta-metragem porque não o conheço bem — os filmes curtos ainda não sairam do marginalismo no mercado brasileiro. Mas Arnaldo Jabor merece citação como uma possível alternativa de amadurecimento na área do cinema direto. Seu O Circo é um documentário que não esconde o autor.
Ainda muito exemplares do movimento, mas representando suas faces menos realizadas: O Desafio, de Paulo Cesar Saraceni; O Padre e a Moça, de Joaquim Pedro de Andrade; A Falecida, de Leon Hirszman. O Desafio representa quase tudo o que existe de pior no movimento: o cinema direto pretendido como uma verdade estabelecida a priori (como Memórias do Cangaço, de Paulo Gil Soares, reportagem cujas conclusões o renórter já levou no bolso ao sair da Redação); a tentativa de impor uma pequena visão particular como panorama documentário de uma conjuntura social; a câmera na mão arbitrariamente utilizada como “prova” de estilo e não como consequência natural da conquista de um estilo; a submissão — à guisa de engagement — às modas e injunções políticas do momento; certo desprezo à fotogenia (em seu sentido mais amplo), paralelamente a preciosismos que "acusam como atitude este desprezo. Mas O Desafio vai refletir, naturalmente, as preocupações e o pensamento-clichê de vasta parcela de opinião sensibilizada pela política e recebe “consagração” de consideráveis áreas cuja coloração é inconfundível. Como nos casos de Barravento, Porto das Caixas, Cinco Vezes Favela, a “consagração” deriva mais de imantação política e aliciamento tribal — ou mesmo de wishful thinking — do que de real sintonia com preocupações renovadoras. Aliás, não se pode imaginar muitos títulos sérios mais velhos do que Porto das Caixas, a fotogenia folclórica e semi-avant garde de Barravento ou o episódio A Pedreira de Cinco Vezes Favela.
Fala Glauber Rocha numa “estética da fome”, a propósito do Cinema Novo. Sua teorização não ajuda a explicar o cinemanovismo. Mas, inegavelmente, no que tem de mais legítimo, o Cinema Novo nasce da consciência da fragilidade da criatura humana em um contexto infra-humano como o brasileiro, e essa consciência marca profundamente o olhar cinemanovista: é a morte iminente, também imanente, roubando a cada momento um pouco da vida humana. O homem minimizado por seu abandono ante a natureza, em Vidas Secas. O homem se conformando à abdicação de todos os sonhos ou arriscando a vida e matando para conservar um pouco de sua ilusão de realização vital, em A Grande Cidade. O permanente diálogo com a morte que é Deus e o Diabo na Terra do Sol. A procura da vez de ser gente, sob a consciência da hora de morrer, em Augusto Matraga. Cabe também lembrar também como, de toda a obra de Nelson Rodrigues, A Falecida (direção: Leon Hirszman) é a única que se insere organicamente no Cinema Novo. E que Menino de Engenho, de Walter Lima Junior, bom filme não muito caraterístico do cinemanovismo, é todo debruçado sobre a morte do momento, o efêmero de tudo.
Em seus melhores momentos, o cinemanovismo conseguiu assimilar ou refletir o comportamento brasileiro, inclusive no que tem de menos apreciável. A “sobrevivência” é um álibi para o perfeito malandro brasileiro de A Grande Cidade (Antônio Pitanga). A falta de enraizamento social, o assassinato (com nomes de desforra, justiça, etc) encontra grandeza no Joãozinho Bem-Bem de Matraga, no assaltante nordestino de A Grande Cidade, no Corisco de Deus e o Diabo. Descendo na escala cinemanovista, o crime premeditado de Porto das Caixas pretende significar valores humanos e espírito de legítima revolta; a promiscuidade é uma forma de agarrar-se à vida e às chances de libertação em O Padre e a Moça. Às margens do cinemanovismo, Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, mostra o crime como forma de manifestação da solidariedade e inventiva dos deserdados. São situações insólitas e suas implicações dentro do Cinema Novo exigiriam mais do que as linhas de uma entrevista,
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
Em filmes como os que destaco favoravelmente na última resposta, observa-se uma adesão entre o autor e personagens representativos de uma sociedade, e uma efervescência artística, que não são facilmente assinaláveis no cinema de hoje. Esses filmes foram realizados contra uma conjuntura econômico-profissional extremamente adversa. Acredito que o tipo de esforço que está sendo empreendido no Brasil, independentemente, poderá ter influências em outros centros produtores, se houver amadurecimento e continuidade de trabalho. No momento, há justa “consagração” de certos filmes no Exterior (Vidas Secas, Deus e o Diabo) e “consagração” leviana, ou desavisada, por desconhecimento de nossa realidade, em muitos outros casos (Porto das Caixas, Barravento, etc — principalmente nas áreas de crítica italiana e francesa). Alguns êxitos de festival foram mais nocivos do que úteis ao cinema brasileiro. Formalmente, alguns cineastas estão assimilando bem as influências estrangeiras mais ousadas, mas não seria uma coisa séria falar agora em contribuição brasileira à estética do cinema.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Uma área muito caracterizada do cinema brasileiro procura apresentar a crítica mais exigente como porta-voz de interesses antinacionais. O absurdo da alegação dispensa comentários. A crítica, em sua maioria, empresta a contribuição que está apta a dar: tanto aparando as hostilidades da platleia, como exorcizando o espírito messiânico que caracteriza vários cineastas, dentro e fora do cinemanovismo. E já é capítulo histórico a contribuição indireta da crítica brasileira (através de cinematecas, cineclubes, etc) à formação dos quadros do Cinema Novo.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
Encaminho o leitor ao artigo já citado (Filme & Cultura nº 1). A dificuldade de diálogo Cinema Novo-público é grande e problemática. Mas diminuiu um pouco, nos últimos doze meses, graças a empreendimentos mais profissionais como A Hora e Vez de Augusto Matraga e Menino de Engenho.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
As características do Cinema Novo são pouco estimulantes para a formação de equipes. Como não incluo Ruy Guerra no movimento cinemanovista (e Norma Bengell, em Os Cafajestes, foi a grande revelação de atriz do moderno cinema brasileiro) acho que as figuras mais representativas do ator cinemanovista são Antônio Pitanga (ex-Antônio Sampaio) e o impecável Jofre Soares (o fazendeiro de Vidas Secas, o Joãozinho Bem-Bem de Matraga). Naturalmente não cabe inventariar intérpretes que se revelaram e aperfeiçoaram fora do Cinema Novo, como Fernanda Montenegro e Leonardo Villar. E vale citar alguns fotógrafos: Luiz Carlos Barreto e José Rosa (Vidas Secas), Afonso Beato (O Circo), o Mário Carneiro de O Padre e a Moça e Arraial do Cabo, Fernando Duarte (A Grande Cidade), Dib Lutfi (câmera de O Desafio).
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