Enquete da revista Filme Cultura
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Esta é a primeira de duas enquetes realizadas no biênio1966/1967 pela principal revista de cinema publicada no Brasil por quase duas décadas, a Filme Cultura. Em pauta na pesquisa estava o ainda candente debate sobre a ascensão do Cinema Novo, que polarizou as discussões sobre a criação cinematográfica no país durante todo o decênio de 1960. O que torna estas enquetes documentos notáveis é o fato de nos revelarem a dimensão da controvérsia entre os importantes críticos que a responderam. Na querela do Cinema Novo, o consenso era pouco e esparso no que diz repeito à avaliação crítica de obras e diretores e aos quadros que compunham o movimento (a própria denominação de “movimento” foi também, por vezes, questionada).
A estrutura da enquete é bastante simples: cada crítico respondeu às mesmas sete perguntas apresentadas logo no início do texto. Para facilitar a compreensão, repeti as questões na seção dedicada às respostas de cada crítico (não há tal reiteração na edição original). Hoje, publico aqui no Teoria Brasileira do Cinema a primeira parte da enquete, que contou com respostas dos críticos:
Salvyano Cavalcanti de Paiva (nascido em 1923, potiguar radicado no Rio; crítico na revista Scena Muda e em periódicos diversos),
Antonio Moniz Vianna (nascido em 1924, baiano radicado no Rio; crítico do Correio da Manhã),
e José Lino Grünewald (nascido em 1931, carioca; crítico no Correio da Manhã, na Última Hora e em periódicos diversos).
Semana que vem, publico a segunda enquete contendo as respostas de mais quatro grandes críticos brasileiros de então.
O texto que se segue, vale lembrar, consta no acervo oficial da Filme Cultura (disponível aqui para livre acesso). Compartilho uma transcrição atualizada conforme o atual padrão ortográfico para maior facilidade de leitura e melhor acessibilidade geral a este importante documento.
Uma excelente leitura a todos!
FILME & CULTURA inicia neste número uma enquete junto à crítica cinematográfica sobre o chamado “cinema novo” brasileiro. Há um lustro se fala contra e a favor do “cinema novo”, realizam-se mostras retrospectivas (até no exterior: Gênova, Berlim), e alguns entusiastas chegam a apontar em filmes portadores desse rótulo influências cujas consequências viriam a ultrapassar os limites da produção nacional. Mas — afinal — como deve ser encarada a incógnita “cinema novo”?
Como explica o nascimento do Cinema Novo?
Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Salvyano Cavalcanti de Paiva
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
O cinema brasileiro mergulhara no caos — a chanchada, o subcinema melodramático e outros gêneros espúrios. Jovens de vanguarda partiram para a criação empírica: nasceu o cinema-novo. Foi, pelo menos, um sopro de renovação numa estrutura arcaica, estalando nos caibros podres, fossilizada na forma e no conteúdo, cega no sentido.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Nem escola, nem movimento; apenas, impulso criador.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Várias são as tendências, muitos mais problemas de estilo pessoal que afloram à medida que os enredos são estruturados nos roteiros para filmagem. Ainda assim, alguns marcam essas tendências: Os Cafajestes, de Ruy Guerra e Miguel Torres, denotando influências sensíveis, sadias, da Nouvelle Vague, principalmente de Jean-Luc Godard, mas condicionadas à temática urbana brasileira, ou, pelo menos, de certa camada social do Brasil; Vidas Secas, que é a cristalização de uma ideia de cinema anterior ao cinema-novo, mas nele incorporada, a ideia de Nelson Pereira dos Santos, o mais normativo jovem diretor, do ponto de vista estético; o por vezes genial, por vezes alucinado, sempre inquietante Deus e o Diabo na Terra do Sol que transformou Glauber Rocha no líder da esquerda estética cinemanovista; São Paulo S. A.[,] talvez o mais próximo do caminho moderno que o cinema-novo oferece, e resta ver até onde irá Luiz Sérgio Person; O Padre e a Moça, a tendência lírica e barroca de Joaquim Pedro, já desenhada nos seus curtos e no irregular mas simpático Garrincha, Alegria do Povo; naturalmente, a linha semidocumental e romântica presente no Menino de Engenho, de Walter Lima Jr.; e numa mescla ou combinação feliz da exasperação de Glauber com a compreensão sociológica de Person, o estranho A Grande Cidade, de Carlos Diegues.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
É cedo para aferir, com rigor, ou fazer suposições em torno do que não passa de um impulso criador mal esboçado: se contribui no plano brasileiro, apenas, ou se no plano mundial, para o enriquecimento da arte cinematográfica. Inclino-me para a primeira possibilidade. Mas, por que a restrição? Sejamos otimistas.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Claro. Sem a crítica, severa mas exaltando a autenticidade e a coragem, o cinema-novo teria estancado precisamente nas manifestações iniciais, as mais débeis do ponto de vista da criação. Aliás, a crítica tem contribuído para a evolução do cinema nacional tout court.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
O diálogo ainda está na fase monossilábica: mas, daqui a pouco, teremos discussões intermináveis, caudais, verborrágicas, comícios. José Mojica Marins existe. E fará escola, não tenhamos dúvida.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Pela ordem, senhor presidente: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr., Luiz Sérgio Person, Ruy Guerra, Mario Carneiro, e[,] embora figura isolada, deitou sua influência sobre os cinemanovistas o diretor Walter Hugo Khouri, cineasta singular — estes são os que, a meu ver, mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos. Mas ficariam falando às pedras se não fosse pelas seguintes veiculadoras de beleza, as benditas entre as mulheres Norma Bengell, Vera Vianna, Helena Inês, a divina Sônia Clara, Maria Lúcia Dahl.
Antonio Moniz Vianna
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
A pergunta parece-me fora de ordem — deveria ser precedida pela definição: que é Cinema Novo? Esta indagação será parcialmente atendida pelas respostas às questões 2 e 3. Mas, que é Cinema Novo? Não é novo porque tenha inventado alguma coisa — no máximo, observa-se uma adaptação assistemática de influências diversas e não raro antagônicas a um quadro social que só é especificamente brasileiro quando o que se discute é o problema do Nordeste; e que se revela inacreditavelmente ingênuo quando o cinemanovista pretende analisar qualquer aspecto político-ideológico. Novo, não é — não adianta importar o chamado “cinema-verdade”, nem misturar Buñuel com Kurosawa. Cinema, algumas vezes tem conseguido ser. Quanto ao que teria provocado um parto, creio que não se descobriu ainda outro meio senão a fecundação — embora se tenha descoberto o meio de evitá-la. A fecundação, no caso, foi o interesse despertado pelo cinema nos últimos anos entre os jovens que frequentavam os cineclubes e liam os críticos de cinema — e nem cineclubes nem crítica existiram praticamente no Brasil até mais ou menos uns vinte anos atrás. Ao longo desse período, a discussão do cinema veio lentamente motivando sobretudo os jovens. Não deixa de ser expressivo o fato de alguns desses diretores se terem exercitado, regularmente ou não, na crítica — também como muitos dos que constituíram na França a chamada nouvelle vague.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Nem escola, nem exatamente um movimento — porque, antes de mais nada, as características são de curriola. Se não fosse curriola, o chamado Cinema Novo, que aceita no grupo um Nelson Pereira dos Santos (de outra geração), não poderia dispensar Walter Hugo Khouri, Rubem Biáfora, Jorge Ileli. Mas o grupo é fechado aos que discordam da linha vaga do cinema participante — e a sorte dos mais promissores dos cinemanovistas é justamente a não participação, possivelmente involuntária, de seus filmes. Cinema Novo é apenas um rótulo. Todo país tem um cinema novo, periodicamente. O do Brasil não será diferente porque não houve, a rigor, um cinema antigo sistematizado. Ao grupo dos pioneiros e lutadores incansáveis seguiu-se — com o estímulo da Vera Cruz no meio do caminho — o bando de rapazes motivados por fatores acima mencionados. Essa circunstância é o que sugere uma impressão muito difundida (e até exportada para revistas francesas), mas totalmente falsa: a de que o cinema brasileiro foi recém-inventado por um grupo de rapazes — daring young boys in the revolutionary trapeze, ou, se se quiser, angry young rebels.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Pelas respostas anteriores, as tendências são vagas e não integráveis numa ideia crítica válida. Posso citar os filmes feitos sob o rótulo de Cinema Novo que me pareceram mais interessantes ou prometedores. Alguns: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Assalto ao Trem Pagador, Vidas Secas, A Hora e Vez de Augusto Matraga, Menino de Engenho, A Grande Cidade, O Padre e a Moça.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
Significação restrita ao âmbito nacional. Por motivos extra-artísticos, no entanto, o chamado Cinema Novo conseguiu acesso às páginas de várias e importantes revistas da Europa (Cahiers du Cinéma, Positif, Cinéma 66) — o que tem inegável importância como fator parcial da expansão do filme brasileiro no mercado mundial, sem o que o cinema nacional nunca ascenderá ao plano de indústria e conseguientemente não haverá uma profissão cinematográfica, a não ser para aquelas especialidades (fotografia, cenografia) pouco procuradas. Aqui, um vício que já deveria estar sendo combatido: todos querem ser diretores, há mais de cinquenta candidatos para uma produção anual média de 25 a 30 filmes. Por isso, também, muitos ainda estão no primeiro filme; raros (e quase sempre os realizadores mais dispensáveis) fizeram até agora mais três. Também a notar: a participação em festivais tem sido útil, mas não deve ser exagerada. A menção frequente a quarenta e tantos prêmios conquistados pelo Cinema Novo deve ser analisada com isenção e objetividade. Nesse número estão incluídos também os obtidos por: O Cangaceiro, Orfeu do Carnaval e O Pagador de Promessas? Todos três em Cannes, e os três (mais o de Santuário, de Lima Barreto, em Veneza) são os mais importantes prêmios já conseguidos pelo cinema nacional. Lima Barreto, o francês Marcel Camus e o afortunado (uma vez) Anselmo Duarte são integrantes do Cinema Novo? E Khouri — com um importante prêmio conferido em Mar del Plata a Na Garganta do Diabo? Afora o Urso de Prata conquistado em Berlim por Os Fuzis e os prêmios lateralmente atribuídos a Vidas Secas durante o Festival de Cannes, as quatro dezenas de prêmios do Cinema Novo foram recolhidas em festivais realizados quase secretamente em Bilbao, Valladolid, Santa Margherita Ligure e Porretta Terme, geralmente em competições circunscritas à produção latino-americana e, na maioria, prêmios a filmes de curta-metragem.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
A contribuição que toda crítica deve oferecer à evolução de qualquer tipo de cinema, novo ou antigo, consiste especificamente em registrá-la, quando ou se houver motivos para isso.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
O diálogo não tem sido fácil. Ou, pelo menos, tem sido muito mais difícil do que o travado entre o público e as antigas chanchadas. Estas foram para a televisão — o público, se não foi atrás delas, não poderia aderir ao seu antídoto, os filmes feitos a sério (às vezes demais, isto é, no ponto em que a monotonia invencível limita com a pretensa seriedade). Vários bons filmes nacionais, que o público aceitaria gostosamente (Deus e o Diabo, Matraga) foram prejudicados pela desconfiança ou mesmo hostilidade da parte do público que havia visto O Tropeiro ou O Grito da Terra. Mas não se deve argumentar apenas com essas barbaridades. Um filme sério e digno como Vidas Secas, carregado de elogios de toda a fração esclarecida, desabou sobre uma massa de público que não estava preparada para aguentar toda uma lentidão calculada. Uma sugestão: reeditar a linha das chanchadas (afinal de contas, não foram só Manga ou Tanko que exploraram o gênero, mas também Billy Wilder e até — que comédia de equívocos! — Shakespeare). Com as chanchadas novamente na tela grande, o cinema nacional recuperaria parte dos espectadores que a televisão conquistou e, ainda, os que a televisão interessou nos disfarces de Chico Anísio ou nos strip-teases de Costinha. E ainda: utilizar nas chanchadas alguns atores que, em seguida, seriam escalados para os filmes ditos sérios. Essa prévia popularização do ator pode dar resultados imprevisíveis — mas nenhum nocivo. É necessário, urgente, povoar os filmes nacionais de mulheres bonitas. Já não tem qualquer cabimento a noção de que a mulher precisa ser feia para ser boa atriz. Foi certamente alguma mulher feia ou então algum misógino que inventou esse aforismo. Ao contrário, a beleza já é uma modalidade de talento — a única que a mulher, se não tem, não pode adquirir. Todas as outras, inclusive a tão decantada arte de representar, podem ser obtidas no varejo.
7. Cite nomes do Cinema Novo que mais valorizaram os quadros técnicos e artísticos do cinema brasileiro.
Os melhores realizadores do novo cinema (não do Cinema Novo) brasileiro são, por enquanto, Walter Hugo Khouri, Glauber Rocha, Jorge Ileli, Rubem Biáfora, Carlos Hugo Christensen, Nelson Pereira dos Santos, Oswaldo Sampaio. Saliente-se a revelação de Walter Lima Júnior e Carlos Diegues, a volta renovada de Roberto Santos, a alta qualidade plástica dos filmes de Ruy Santos. Mas o cinema brasileiro seria mais novo ainda se Lima Barreto voltasse, como continua prometendo, a dirigir. Cada vez mais inventivo, um criador de filmes como há poucos no mundo, Lima Barreto é infinitamente mais jovem do que os realizadores com idade para serem seus filhos.
José Lino Grünewald
1. Como explica o nascimento do Cinema Novo?
Não se explica o nascimento do cinema novo como um fenômeno inesperado. Bastava surgir a oportunidade para que os jovens pegassem a câmera nas mãos e qualquer coisa de novo brotaria. Veio a chance e, como uma avalanche, os jovens soterraram aquole antigo panorama de sandices e chanchadas e fizeram a estética do nosso cinema dar um salto qualitativo talvez inusitado na história dessa arte. Daí, começaram a aparecer obras de tal importância, seja como invenção ou choque de ideias, que as platéias não só foram sacudidas aqui, mas no exterior. Cito, ao correr da fita aleatória da memória, realizações como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Cafajestes e Os Fuzis, de Ruy Guerra, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, ou O Desafio, de Paulo César Saraceni.
Antes, a carência de aperfeiçoamento técnico, a inexistência de uma indústria especializada e — mesmo — a falta de cultura (geral ou cinematográfica) mantinham o marasmo, onde exceções, como (novamente ao correr da memória) Limite, de Mário Peixoto, Ganga Bruta, de Humberto Mauro, ou O Cangaceiro, de Lima Barreto, emergiam num intervalo de anos e, até, decênios. Há pouco, deu-se a grande guinada e o cinema brasileiro empilha prêmios de festivais internacionais.
2. Considera o Cinema Novo uma escola ou um movimento?
Sob um aspecto formal, não é escola. Nem se diria que o cinema novo seja compactamente um movimento, já que não houve aquela intencionalidade do seu lançamento, nem qualquer programática estética definida.
3. Quais os filmes que, a seu ver, melhor exemplificam as tendências do Cinema Novo?
Creio já haver respondido na primeira pergunta.
4. Considera o Cinema Novo uma contribuição importante ao momento da arte cinematográfica ou julga que sua significação se restringe à produção nacional?
A sua contribuição é mais importante no âmbito nacional, pelo que representou em matéria de reviravolta no nosso cinema. Porém, a par de tantos outros cinemas novos brotando de outros países, lega a sua contribuição internacional, no processo de reformulação permanente de uma linguagem poderosa, da “arte do século”.
5. A crítica tem oferecido uma contribuição à evolução do Cinema Novo?
Sim, a crítica contribuiu, quase num sentido análogo àquele através do qual a crítica francesa praticamente fez a Nouvelle Vague e colocou o cinema francês em ascendência internacional. Aqui, foi um fenômeno idêntico. O cinema novo, em muito, saiu das cinematecas e das colunas de jornais e revistas. Mesmo porque, num país com a indústria cinematográfica incipiente, a inteligência e a imaginação vêm naturalmente antes da técnica. Nos Estados Unidos foi possível dar-se o oposto e, daí, aquele seu específico fílmico.
6. Como vê o diálogo entre o público e os realizadores do Cinema Novo?
O diálogo vai ampliando, naturalmente. Pois, à medida que o público se educa recebendo informações estéticas mais originais, melhor descerra o contexto aparentemente difícil e “anticomercial” das fitas. Só a censura é capaz de tornar novamente a informação difícil.
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