Por Mario de Andrade
Poucas vezes me vi tão indeciso como neste momento, em que uma revista de moços me pede iniciar nela a colaboração dos veteranos. Seria mais hábil lhe ceder um desses estudos especializados, que salvasse em sua máscara os meus louros possíveis de escritor. Mas ainda conservo das minhas aventuras literárias, aquela audácia de poder errar, com que aceitei de um dos moços que me convidaram a este artigo, a sugestão de falar sobre a inteligência nova do meu país. E confessarei desde logo que não a sinto muito superior à de minha geração.
Nós ainda tínhamos muito presentes, e praticadas mesmo em nossos anos de rapazes, as tradições da cabeleira. Ainda ouvíramos, e usáramos um bocado, a boêmia dos cafés e a cor nevosa do absinto. Mas de um acorde de Debussy, de uma opinião de Wilde ou de Gide, da corte de Guilherme II, para um ritmo batido de Strawinski, um assunto de Rivera e os companheiros de Hitler, vai tal antagonismo, que as melhoras da inteligência brasileira não me parecem satisfazer às exigências do tempo e da nacionalidade.
É certo que sob o ponto-de-vista cultural progredimos bastante. Se em algumas escolas tradicionais há muito atraso, junto aos núcleos de certas faculdades novas de filosofia, ciências e letras, de medicina, de economia e política, já vão se formando gerações bem mais técnicas e bem mais humanísticas. Há um realismo novo, um maior interêsse pela inteligência lógica, que se observa muito bem nisso de serem agora mais numerosos os escritores que iniciam carreira escrevendo prosa e interessados só por ela, quebrando a tradição do livrinho de versos inaugural.
Esta melhoria sensível de inteligência técnica se manifesta principalmente nas escolas que tiveram o bom-senso de buscar professores estrangeiros, ou mesmo brasileiros educados noutras terras, os quais trouxeram de seus costumes culturais e progresso pedagógico, uma mentalidade mais sadia que desistiu do brilho e da adivinhação. A modos que sempre fui um subalterno Cherubini, desconfiado dos geniais e dos meninos-prodigios. . . Sempre é certo que as poucas vezes em que fui chamado a servir publicamente, só o preparo das coletividades em mais alto nivelamento me preocupou. Assim agi quando foi da reforma do Instituto Nacional de Música. Assim agi no programa de expansão cultural do Departamento de Cultura e por isso tanto me detestaram os geniosos do a solo resplendente. E ainda faz pouco, tendo o sr. Ministro da Educação me pedido um anteprojeto para uma escola de belas-artes, se já, mais pacificado em minhas experiências, cedi um jardinzinho de exceção aos gênios em promessa, o pressuposto que determinou meus conselhos e formas, foi o de um alto nivelamento artesanal. Sou pelo nivelamento das coletividades. Não pelo nivelamento por baixo, que se percebe a cada close-up do nosso ramerrão educativo, mas por um elevado nivelamento cultural da nossa inteligência brasileira, que evite a falsa altura, comum entre nós, dos arranha-céus. . . em taipa de mão. E por isso não me desagrada a modesta conciência técnica com que a escola de São Paulo se afirma em sua macia lentidão, na pintura como nas ciências sociais, ajuntando pedra sobre pedra, amiga das afirmações bem baseadas, mais amorosa de pesquisar que de concluir. Mas esta primeira grande diferença me parece pouco.
Entre a minha geração, de espírito formado antes de 1914, para as gerações mais novas, vai outra diferença, esta profunda mas pérfida, que está dando péssimos resultados. Nós éramos abstencionistas, na infinita maioria. Nem poderei dizer “abstencionistas”, o que implica uma atitude conciente do espírito: nós éramos uns inconcientes. Nem mesmo o nacionalismo que praticávamos com uma pouco maior largueza que os regionalistas nossos antecessores, conseguira definir em nós qualquer consciência da condição do intelectual, seus deveres para com a arte e a humanidade, suas relações com a sociedade e o estado. A pressão dos novos convencionalismos políticos posteriores ao Tratado de Versalhes, mesmo no edênico Brasil se manifestou. Os novos que vieram em seguida já não eram mais uns inconcientes e nem ainda abstencionistas. E tempo houve, até o momento em que o Estado se preocupou de exigir do intelectual a sua integração no corpo do regime, tempo houve em que, ao lado de movimentos mais sérios e honestos, o intelectual viveu de namorar com as novas ideologias do telégrafo. Foi a fase serenatista dos simpatizantes.
Dêsse período curto mas suficientemente longo para afetar qualquer noção moral de inteligência, é que ainda estamos sofrendo os efeitos. Favorecida pela ignorância e pelo despoliciamento cultural, a verdadeira tradição nova que a fase dos simpatizantes nos deixou, foi essa maldição que poderá se chamar de “imperativo econômico da inteligência!”. Estarei por acaso muito escuro e desconhecedor das realidades, afirmando ver a gorda maioria dos intelectuais de agora tomar êsse imperativo econômico por sua norma de conduta e única lei?
O Estado, com justa razão, proibira as serenatas com que o simpatizante acordava a sua vizinhança e lhe deixava na insônia o retrato das Rosinas adventícias. Mas a intelectualidade se ajeitou fácil. Tirou das terminologias em moda, sua nova fantasia arlequinal de conformismo: esta dolorosa sujeição da inteligência a toda espécie de imperativos econômicos. A inconciência de minha geração, se não a absolve, a fataliza — homens de um fim-de-século em que, meu Deus! no Brasil não repercutia nada! Mas para o intelectual de agora não é possível mais invocar o estado-de-graça da fatalidade. Pois então rebatisaram a maluca, lhe deram sexo mais dominador; são os Imperativos Econômicos que passam! E chuviscam agora êsses cômodos voluntários dos abstencionismos e da complacência. Ia acrescentando “e da pouca vergonha”, mas me refreei a tempo. Na verdade os homens de pouca vergonha aparecem em qualquer época, muito embora as condições sociais do intelectual contemporâneo e o adubo dos imperativos econômicos estejam se demonstrando muito favoráveis à proliferação de cogumelos.
Com efeito: alguns, e serão por acaso os melhores?. . . desgotados da vida, malferidos em seu sentimento humano pelas guerras, se retiram para o seu rincão de ciência, pagam como é dever o imposto sôbre a renda, apenas mui gratos se alguém lhes concede publicar algum documento precioso ou descobrir uma nova estrelinha do céu. Outros, menos abstencionistas e bem mais complacentes, gostam de pagar a quem lhes paga, trocando primogenitura e muitos elogios falados e escritos, pelos tomates de alguma situação vitaminosa. Não são bois alçados, como os primeiros, se preferem pingos ensinados.
Os terceiros, não existe vivente que se lhes compare no reino animal. Mudam de ideais a qualquer notícia, não resistem ao sopro de qualquer brisa. Mas que podem fazer se carecem de pão, se precisam pagar o médico da familia? Pão e doença, filho gripado e mulher grávida, são hoje para a inteligência os mais fáceis avatares do cinismo moral. E um forte número dêsses pretensos intelectuais são verdadeiros vácuos de ignorância. Mas como se cultivar se lutam pela vida!. . . A luta pela vida não é mais, como no dicionário oitocentista, um propósito de trabalho e de vitória do mais forte; é a glorificação da incompetência. A tanto chega o predomínio das palavras sôbre os homens. . . E se vê intelectuais, sem o menor respeito pelas glórias conquistadas, mudarem de diretrizes, da meia-noite para o meio-dia, servindo aos interêsses mais torvos. No sentido da sua dignidade moral, a inteligência brasileira se transformou muito, passando da inconciência social, para a consciência da sua condição. Mas não creio tenha havido melhoras. Se do meu tempo o mais que se possa dizer é que foi amoral, hoje grassa na inteligência nova uma frequente imoralidade.
Se contemplamos a paisagem artistica o que salta abundantemente aos olhos é a imperfeição do preparo técnico. O experimentalismo dos “modernistas” de minha geração já por vária parte se confundia com a ignorância e foi defesa de muitos. Mas ainda a maioria dos meus contemporâneos vinha de costumes mais enérgicos em que não se passava por decreto. E todos os que resistiram ou parecem resistir à filtragem dos anos, foram técnicos honestos de suas artes.
Mas a esse experimentalismo artistico veio logo se juntando um perigo ainda mais confusionista e sentimentalmente glorioloso, a tese da “arte social”. Montados nesta minerva (minerva ou mercúrio?...) da fase dos simpatizantes, não houve mais ignorância nem diletantismo que não se desculpasse de sua miséria, como se a arte, por ser social, deixasse de ser simplesmente arte.
Foi bem fatigante a experiência que tive, fazendo da técnica o meu cavalo de batalha nas criticas literárias do “Diário de Noticias”. Não deixei de ser compreendido, o fui até muito bem pelos culposos, embora êles não pudessem atingir tôda a extensão do meu pensamento. Muito poucos perceberam a lógica de quem, tendo combatido, não pela ausência, mas pela liberdade da técnica num tempo de estreito formalismo, agora combatia pela aquisição de uma consciência técnica no artista, ou simplesmente de uma consciência profissional, num periodo de liberalismo artístico, que nada mais está se tornando que cobertura da vadiagem e do apriorismo dos instintos.
Outro forte caso a lembrar seria o do surgimento de numerosa poesia católica que outra cousa não faz senão se comprazer do pecado, mas isto já me parece mais um efeito que causa. A causa é mais grave, e mais tradicional também; esta absurda e permanente ausência de pensamento filosófico, de uma atitude filosófica da inteligência, entre os nossos intelectuais. Os cientistas se refugiam no laboratório ou na exposição sedentária das doutrinas alheias. Os artistas não têm onde se refugiar, mas se disfarçam com ingenuidade no padrão da arte social. Se acaso pretendemos saber o que os nossos intelectuais pensam dos problemas essenciais do ser, se fica atônito: não há o que respigar nas obras de quase todos e muito menos em suas atarantadas atitudes vitais. Não existe uma obra, em toda a ficção nacional, em que possamos seguir uma linha de pensamento nem muito menos a evolução de um corpo orgânico de idéias. E por isso causou enorme mal-estar e logo travou-se em torno dele a conspiração do silêncio, mesmo dos que o deviam atacar, o aparecimento, a verdadeira aparição fantasmal de um Otávio de Faria que, certo ou errado, se apresentava romanceando sobre um núcleo de idéias organizadas em sistema. E é por esta falha várias vêzes secular de espírito filosófico que são tão raros os “casos” na inteligência do Brasil, e ela se manifesta com vasta fraqueza de poder dramático e ausência quase total de concepção satírica. Ninguém castiga. Ninguém previne. Ninguém sofre.
Isto é, sofre sim! Me esquecia do sofrimento humano criado, ou pelo menos largamente desenvolvido na ficção contemporânea do Brasil, esse herói novo, esse protagonista sintomático de muitos dos nossos melhores novelistas atuais: o fracassado. De uns dez anos pra cá, sem a menor intenção de escola, de moda literária ou imitação, numerosos escritores nacionais se puseram cantando (é bem o termo!...) o tipo do fracassado.
Observo mais uma vez não estar esquecido de que pra se dar entrecho, há sempre um qualquer fracasso a descrever, um amor, uma terra, uma luta social, um ser que faliu. Um Dom Quixote fracassa como fracassam Otelo e Madame Bovary. Mas estes, como quase todos os heróis da arte, são seres dotados de ideais, de ambições enormes, de forças morais, intelectuais, físicas, representam tendências generosas ou perversivas. São enfim seres capazes de se impor, conquistar suas pretensões, vencer na vida, mas que no embate contra forças maiores são dominados e fracassam. Mas em nossa literatura de ficção, romance ou conto, o que está aparecendo com abundância não é este fracasso derivado de duas forças em luta, mas a descrição do ser sem força nenhuma, do indivíduo desfibrado, incompetente pra viver, e que não consegue opor elemento pessoal nenhum, nenhum traço de caráter, nenhum músculo como nenhum ideal, contra a vida ambiente. Antes, se entrega à sua conformista insolubilidade. Quando, ao denunciar este fenômeno, me servi quase destas mesmas palavras, julguei lhe descobrir algumas raízes tradicionais. Hoje estou convencido de que me enganei. O fenômeno não tem raízes que não sejam contemporâneas e não prolonga qualquer espécie de tradição.
Talvez esteja no Carlos do “Ciclo da Cana de Açúcar” a primeira amostra bem típica dêste fracassado nacional. Nos lembremos ainda do triste personagem de “Angústia"... Já numa crônica a respeito, pude enumerar mais um herói de Cordeiro de Andrade, nada menos que seis outros num romance de Cecílio Carneiro, e, além destes fracassados cultos, outro, caipira, do escritor Leão Machado, e um nordestino do povo, figura central do “Mundo Perdido” de Fran Martins. Poucos tempos depois topava outra vez com o homem nos “Fragmentos de um Caderno de Memórias”, do contista mineiro Francisco Inácio Peixoto. Em seguida era o fazendeiro, de Luiz Martins. E com os últimos meses, posso acrescentar mais três retratos ilustres a esta galeria pestilenta: um, impressionantemente exato, descrito por Osvaldo Alves na maior estréia de 1940, “Um Homem fora do Mundo”; e os dois principais inocentes” de Gilberto Amado, num livro bem irregular mas de grave importância: o Emílio e essa extranha criação, figura realmente apaixonante em seu mistério, Faial, o moço que dotado de tôdas as fôrças, a tudo renuncia da vida existente e foge, criar o seu imaginário mundo num sertão fora do mundo.
Não é possível aceitar esta frequência de um tipo moral em nossa ficção viva, sem lhe reconhecer uma causa. Eu fui grosseiro no enumerar apenas os retratos mais francos do protótipo. Com alguma subtileza, era ainda possível recensear mais delicadas modalidades dele nas obras de outros importantes escritores nacionais. Os que indiquei nos bastam para afirmar que existe em nossa intelectualidade contemporânea a preconciência, a intuição insuspeita de algum crime, de alguma falha enorme, pois que tanto assim ela se agrada de um herói que só tem como elemento de atração, a total fragilidade e frouxo conformismo. E se o Carlos, de Lins do Rêgo, é o mais emocionantemente fraco, se o Cristiano, de Osvaldo Alves, o mais irrespiravelmente irresoluto: eu creio que o Faial, como Gilberto Amado o propôs nas análises que fez da sua criatura, é o que mais convida a pensar, forte, belo, dominador, com tôdas as probabilidades de vitória, mas que anula-se numa conformista desistência e vai-se embora. Vai-se embora pra Pasárgada?. . .
Porque os poetas por isso mesmo que mais escravos da sensibilidade e libertos do raciocínio, ainda são mais adivinhões que os prosistas. Já em 1930, a respeito de “Vou-me embora pra Pasárgada” de Manuel Bandeira, pretendi mostrar que esse mesmo tema da desistência estava frequentando numerosamente a poesia moderna do Brasil. Se o complexo de inferioridade sempre foi uma das grandes falhas da inteligência nacional, não sei se as angústias dos tempos de agora e suas ferozes mudanças vieram segredar aos ouvidos passivos dessa mania de inferioridade, o convite à desistência e a noção do fracasso total. E não é difícil imaginar a que desastrosíssima incapacidade do ser poderá nos levar tal estado-de-conciência. Toda esta literatura dissolvente será por acaso um sintoma de que o homem brasileiro está às portas de desistir de si mesmo?
Eu sei que há diferenças e melhoras na inteligência nova do meu país, mas não consigo percebê-la mais enérgica nem muito menos dotada de maior virtude. Nós, os modernistas de minha geração, sacrificávamos concientemente, pelo menos alguns, a possível beleza das nossas artes, em proveito de interesses utilitários. A arte se empobrecia de realidades estéticas, dissolvida em pesquisas. Experimentações rítmicas, auscultações do subconciente, adaptações nacionais de linguagem, de música, de cores e formas plásticas, de crítica — tudo eram interesses que deformavam a isenção e o equilíbrio de qualquer mensagem. Então fomos descobrir, mais nas revistas de combate que nos livros de filosofia, a palavra salvadora (sempre o perigo das lustrosas palavras. . .) que acalmava as nossas ambições estéticas maltratadas; pragmatismo. Aquilo, gente, eram pragmatismos também! Eram as necessidades da hora, as verdades utilitárias por que nos sacrificávamos, tão mártires como os que se iam cristianizando chinês.
O mal não era assim tamanho pois que a nossa conciência permanecia eminenteniente estética, mas a desgraça é que a palavra deslumbrou. E deslumbrou demais, numa terra e coletividade pouco afeita a estudos concienciosos e que, se libertando aos poucos de suas tradições religiosas, não se preocupava de preencher o vazio ficado com uma qualquer outra conceituação moral da inteligência. Só é verdade o que é útil, e toca o zabumba ensurdecedor dos pragmatismos. Pragmatismo ou displicência nova? E o intelectual se passa de galho em galho, de árvore em árvore, na estilização mais nacionalista possível da dança do tangará. Isso: uma intelectualidade coreográfica, inspirada na quadrilha dos “imperativos econômicos”, onde só se executa, com desilusória monotonia, o passo do "changez de places" e o "tour au vis-à-vis".
A minha pífia geração era afinal das contas o quinto ato conclusivo de um mundo, e representava bastante bem a sua época dissolvida nas garoas de um impressionismo que alagava as morais como as politicas. Uma geração de degeneração aristocrática, amoral, gozada, e, apesar da revolução modernista, não muito distante das gerações de que ela era o “sorriso” final. E teve sempre o mérito de proclamar a chegada de um mundo novo fazendo o modernismo e em grande parte 1930. Ao passo que as gerações seguintes, já de outro e mais bem municiado realismo, nada têm de gozadas, são alevantadas mesmo, e já buscam o seu prazer no estudo e na discussão dos problemas humanos e não. . . no prazer. Mas não parecem aguentar o tranco da sua diferença. A severidade dos costumes, a rusticidade dos amores e tendências, o número pequeno de preceitos tabus, próprios das civilizações em começo, e de que são exemplos próximos, o início da civilização norte-americana, e em nossos dias a Rússia e a Alemanha, nada disto se percebe em nossa geração atual. Antes por muitas partes, ela continua a devassidão genérica do meu tempo. Nós, enfim, éramos bem dignos da nossa época. Ao passo que vai nos substituindo uma geração bem inferior ao momento que ela está vivendo.
Talvez seja necessário que as inteligências moças mais capazes se esqueçam por completo das elásticas verdades transitórias e revalorizem o ideal da verdade absoluta. Não será este o mais patriótico... pragmatismo nacional? É possível acreditar sem fé. Acreditar é muitas vêzes um ato de caridade. E se o homem não pode viver sem seus mitos, imagino que seria sublime os mais capazes, mesmo sem fé, se porém na religião da uma-só verdade. Fazerem da verdade absoluta o seu mito e o seu estágio de purificação. Ou de superação. Não convém à inteligência brasileira se satisfazer tão cedo de suas conquistas. A satisfação, como a felicidade, é um empobrecimento. E a palavra de Goethe não deverá jamais ser esquecida: superar-se.
Imagino que uma verdadeira conciência técnica profissional poderá fazer com que nos condicionemos ao nosso tempo e o superemos, o desbastando de suas fugaces aparências, em vez de a elas nos escravizarmos. Nem penso numa qualquer tecnocracia, antes, confio é na potência moralizadora da técnica. E salvadora. . Essa mesma técnica que se salvou Sócrates e Rikiú pela morte, salvou Fídias, salvou o Bach da “Missa em Si Menor”, salvou os medievais, os egípcios e tantos outros, dentro da mesma vida. O intelectual não pode mais ser um abstencionista; e não é o abstencionismo que proclamo nem mesmo quando aspiro ao revigoramento novo do “mito” da verdade absoluta. Mas se o intelectual fôr um verdadeiro técnico da sua inteligência, ele não será jamais um conformista. Simplesmente porque então a sua verdade pessoal será irreprimível. Ele não terá nem mesmo esse conformismo “de partido”, tão propagado em nossos dias. E se o aceita, deixa imediatamente de ser um intelectual, para se transformar num político de ação. Ora como atividade, o intelectual, por definição, não é um ser político. Ele é mesmo, por excelência, o out-law, e tira talvez a sua maior força fecundante justo dessa imposição irremediável da “sua” verdade.
Será preciso ter sempre em conta que não entendo por técnica do intelectual simploriamente o artesanato de colocar bem as palavras em juízos perfeitos. Participa da técnica tal como eu a entendo, dilatando agora para o intelectual o que disse noutro lugar exclusivamente para o artista, não somente o artesanato e as técnicas tradicionais adquiridas pelo estudo, mas ainda a técnica pessoal, o processo de realização do indivíduo, a verdade do ser, nascida sempre da sua moralidade profissional. Não tanto o seu assunto mas a maneira de realizar o seu assunto. Que os assuntos são gerais e eternos, e entre êles está o deus como o herói e os feitos. Mas a superação que pertence à técnica pessoal do artista como do intelectual, é o seu pensamento inconformável aos imperativos exteriores. Esta a sua verdade absoluta.
E junto desta técnica intelectual, talvez devêssemos obedecer mais à sensibilidade... Uma circunstância incontestável da vida é que, premidos por ela, nós exercitamos cotidianamente a nossa inteligência, não pra elevarmos a vida às suas alturas filosóficas, a uma qualquer interpretação dela, mas pra justificarmos os nossos próprios atos. A diferença quotidiana entre o exercicio da inteligência e o da sensibilidade, é que esta se cotidianiza, vira costume, se esquece de si, se esquece do amor, dos sentimentos, ao passo que a inteligência jamais esquece de se exercer, na justificação malabarística dos nossos cotidianos descaminhos. O sentimento, em nós, vira “costume”, e é por causa deste enfraquecimento da sensibilidade que se criou o dia ritual do aniversário, em que nos relembramos, no ar de festa, que o amor existe e o sentimento existe. E então nesse dia não é só o te-deum e a seda que o homem oferece aos seus amores divinos e profanos, mas uma aproximação mais grave e mais sentida. Imagino que será de muito benefício para o intelectual brasileiro, especialmente nos momentos decisórios de suas atitudes vitais, auscultar mais vezes a sua sensibilidade. Desde que, entenda-se, bem, não continue esse conselho da sensibilidade, considerações justificadeiras da inteligência cotidiana e seus imperativos. Neste sentido, é possível afirmar que, pelo menos em periodos tão precários de integridade humana como o que atravessamos, a sensibilidade é que é insensível, metalicamente ditatorial em seus mandos, ao passo que a inteligência é a mais enceguecedora das paixões. Porque mais pervertida e mais fácil de se perverter a si mesma.
Não tive a menor pretensão de dar, nestas linhas, um remédio às angústias novas da inteligência brasileira contemporânea, e mesmo de alguns aspectos e problemas dela não tratei por não poder fazê-lo. Lembrei apenas alguns motivos de pensamento e análise que talvez a possam levar a maior dignidade. Há vinte anos atrás, se me perguntassem o que valia mais, se o autor, se a ideia, eu responderia sem hesitar que o autor. Agora já não sei mais, vivo incerto. O homem é coisa sublime, porém, se as idéias prevalecessem sôbre os homens, já de muito que a paz teria pousado sôbre a terra. E ando saudoso da paz.
São Paulo, abril de 1941.
O tablet até caiu da minha mão com o peso dessa foto! Só monstros sagrados!