A ideologia da crítica brasileira e o problema do diálogo cinematográfico
Comunicação à I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica (São Paulo, 12-15 nov. 1960), organizada pela Cinemateca Brasileira.
por Paulo Emílio Sales Gomes
Quando o cinema se tornou dialogado perdeu a universalidade espontânea que possuía. Motivos diversos levaram-no, contudo, a aparentar essa característica. Os grandes produtores visam o mercado internacional. Sendo para eles importante levar em consideração o público dos mais diferentes países, esse cálculo foi correntemente interpretado como permanência da universalidade.
Em muitos países, a dublagem dos filmes estrangeiros na língua nacional é a regra. Acontece que a voz é parte tão fundamental da personalidade como qualquer setor da anatomia. Os “frankensteins” belos — a junção, por exemplo, do corpo de Elizabeth Taylor e do timbre de Catherine Verdier — mas, por definição, monstruosos mantêm no público a ilusão da familiaridade.
A convenção da universalidade do cinema dialogado foi, finalmente, fortalecida pela cumplicidade da crítica. Os críticos do mundo inteiro fazem de conta que não tem importância o fato de não entenderem a língua falada numa porção considerável das fitas que discutem. Todos desprezam a dublagem e estão certos. Ao mesmo tempo, porém, apenas porque o letreiro superposto permite compreender do que se trata, se convencem de que estão plenamente capacitados para julgar películas dialogadas em línguas que desconhecem.
O fator decisivo para a boa consciência dos críticos é a ideologia que professam, a saber, a de que o cinema é uma arte essencialmente visual. O desconforto em seguir a dialogação através dos letreiros é atenuado pela convicção de que nada de essencial foi perdido.
Infelizmente para nós, é impossível estabelecer fronteira entre a banda imagem e a sonora. Assim como o timbre da voz faz parte integrante do ser, o som, as vozes, o sentido e o som das palavras pronunciadas são inseparáveis das imagens na constituição da natureza do filme dialogado.
Somos espectadores diminuídos perante os filmes cuja língua ignoramos. Não selecionarei um primeiro exemplo que ampare facilmente a minha tese. Escolho Man of Aran [O homem de Aran, 1934], obra em que o diálogo é escasso e desimportante na economia geral da obra. Há, entretanto, no filme de Flaherty valores que decorrem simultaneamente da máscara humana e do sentido de voz. Esses valores nos escapam e podem ser plenamente apreendidos apenas por um espectador da ilha de Aran.
Conversando com críticos suecos e com o cineasta Ingmar Bergman, tive subitamente a sensação vertiginosa do ponto a que meu conhecimento da obra deste último era fragmentário. Do autor cinematográfico posso saber alguma coisa, mas ignoro a qualidade de sua literatura e o grau de sua integração plástica. Quanto ao diretor de atores, aprecio a forma de um personagem chorar, mas não me atinge a maneira pela qual Bergman faz Max von Sydow pronunciar algumas palavras cruciais.
(Não sei se o conhecimento da língua sueca me faria gostar mais, ou menos, da obra de Bergman. Afirmo simplesmente que recebo menos do que existe, e que nada me permite afirmar que haja maior significado naquilo que compreendo do que naquilo que ignoro.)
O cinema sueco, o japonês, o russo, e outros, que tantos dentre nós amamos tanto, constituem na realidade universos acessíveis numa proporção bem limitada. Quando as fitas são dialogadas em línguas mais próximas, atenua-se o grau de alienação. Seu desaparecimento, todavia, está condicionado a uma circunstância pouco frequente — a de se ouvir a língua estrangeira tão bem como a própria.
Essas verificações nos desagradam, e tendemos então a opor-lhes um sistema de concepções e convenções derivadas da primeira ideologia estética que o cinema conheceu, ainda na era do diálogo escrito, e que o situavam como arte autônoma e essencialmente visual. O critério para determinar o grau de “verdade” de uma ideologia é a sua utilidade. O que justifica a ideologia autonomista e visual é apenas o fato de ter sido, em seu tempo, a que melhor amparou o progresso do cinema.
(O filme dialogado em língua desconhecida propõe outro problema embaraçoso, inclusive para os partidários mais ferrenhos da posição “visualista”. Os letreiros sobrepostos alteram a plasticidade da imagem e sobretudo a necessidade de lê-los perturba as disposições ideais de contemplação. Mesmo no terreno estrito da imagem, assistimos a um filme estrangeiro em piores condições de qualidade, e, principalmente, tempo, do que o espectador original.)
O espectador norte-americano ou francês está diminuído ou pleno em se tratando de Citizen Kane [Cidadão Kane] ou de La Règle du jeu [A regra do jogo]. O brasileiro não conhece essa alternativa porque até hoje não houve um bom filme dialogado nacional.
Por que não houve um bom filme dialogado brasileiro?
O número de respostas válidas a esta pergunta é certamente muito grande, e vamos aqui sugerir apenas uma, à luz do que foi exposto.
A escola para o cinema nacional tem sido a do espectador de filmes estrangeiros. Nessas condições, é permitido conjeturar de maneira bastante generalizada que os nossos cineastas nunca assistiram, em toda a sua plenitude, a uma fita dialogada. As lições das películas estrangeiras só podiam ser totalmente apreendidas através das sequências sem fala. Será por acaso que os bons momentos do cinema brasileiro são sempre calados?
Os cineastas nacionais precisam encontrar outra escola, a da descoberta e da invenção, para o problema do diálogo. Mas, para isso, precisam libertar-se definitivamente da ideologia morta que lhes foi inculcada pela crítica, a respeito da preponderância do visual em cinema.
Seria ótimo se eles caíssem no exagero contrário. A margem de oportunismo das ideologias é sempre muito grande. Nas condições brasileiras atuais, a ideologia cinematográfica mais útil e portanto “verdadeira” seria a que definisse o cinema como uma fala literária e dramática envolvida por imagens.