por Paulo Emílio Sales Gomes
NOTA. Este texto de Paulo Emílio, escrito por ocasião do Curso para dirigentes de cineclubes, promovido pela Cinemateca Brasileira em 1958, foi originalmente publicado no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e consta no acervo da Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (disponível aqui). Compartilho aqui uma transcrição atualizada conforme o atual padrão ortográfico para maior facilidade de leitura.
A volta ao filme é tão importante para a cultura cinematográfica quanto a volta ao texto para a literatura, porém muito mais problemática. Até a década de 1930, mesmo nos países mais adiantados a cultura cinematográfica repousava praticamente na memória ou nas impressões publicadas em jornais, revistas e livros. As histórias do cinema eram, na realidade, autobiografias de espectadores atentos como os franceses Maurice Bardèche e Robert Brasillach ou testemunhos de pessoas, como o americano Terry Ramsaye, que evoluíam nos meios da nova indústria. A atividade dos clubes de cinema desenvolvida sobretudo na França, apesar de realizações importantes como a redescoberta e valorização da obra de Georges Méliès, dava do passado do cinema uma visão fragmentária. A criação das primeiras cinematecas nos Estados Unidos, França, Inglaterra, Alemanha, União Soviética e Itália, a partir de 1935, deu novos rumos à cultura cinematográfica. O intervalo entre a publicação do livro de Bardèche e Brasillach e do The Rise of the American Film, de Lewis Jacobs, é de apenas quatro anos, e se este último resiste melhor à crítica moderna é porque o autor americano já pôde utilizar em seu trabalho os filmes colecionados por Iris Barry na recém-criada Cinemateca de Nova York. Na semana passada, Richard Griffith, o atual conservador dessa instituição, lembrava numa entrevista à imprensa de São Paulo que no momento da fundação da cinemateca norte-americana somente uma universidade do país tinha cursos de apreciação cinematográfica, ao passo que hoje o número ultrapassa setenta. A preservação e a difusão dos velhos filmes permitiram ainda que várias centenas de colégios secundários incluíssem em seus programas o estudo do cinema como expressão artística, sem falar de sua utilização nos museus, film societies e outras entidades culturais.
Até há uns cinco anos, podia-se explicar o atraso do Brasil em matéria de cultura cinematográfica em termos de um meio social que ainda não comportasse esse gênero de atividade intelectual e artística. Hoje, essa asserção seria frontalmente desmentida pela espontaneidade com que brotam grupos de estudos em todo o território nacional e pelo número crescente de escolas secundárias que se preocupam em dar aos alunos noções de apreciação cinematográfica. Essas diferentes iniciativas deparam com os maiores obstáculos para realizar suas tarefas e, entretanto, dezenas delas já contam com anos de atividade contínua. A dificuldade principal é a obtenção de filmes para ilustrar aulas e conferências ou alimentar as programações dos grupos culturais. A segunda dificuldade, derivada em parte da primeira, é a escassez dos quadros de professores ou dirigentes de grupos com formação adequada. Se a Cinemateca Brasileira tivesse recebido os meios de que necessita para preservar e difundir filmes, já estariam sendo facilmente vencidos os empecilhos básicos para o florescimento da cultura cinematográfica no Brasil e sua transformação no movimento de educação artística mais vivo da coletividade. A Cinemateca já tem relações e compromissos com dezenas de entidades que esperam pacientemente o dia em que poderão receber o material cinematográfico de que precisam. É rara a semana em que não chegam novas solicitações de escolas, bibliotecas e clubes de cinema desejosos de iniciar atividade e que ignoram a situação de miséria e desamparo em que ainda se encontra a Cinemateca Brasileira. Mesmo nesse deplorável estado, a instituição tem procurado, dentro do limite ridículo de suas atuais possibilidades, fazer alguma coisa por aqueles que nela confiam. Com esse espírito, respondeu a um apelo lançado por diferentes entidades da capital e do interior no sentido de auxiliar a ampliação e o aprofundamento da formação cinematográfica de seus quadros.
Desde janeiro deste ano, desenvolve-se o curso para dirigentes de cineclubes promovido pela Cinemateca Brasileira. As aulas realizam-se aos sábados, a fim de permitir o comparecimento dos alunos do interior, alguns dos quais, enviados pelos clubes de cinema de Marília ou Avaré, viajam semanalmente mais de vinte horas. Várias razões indicam que a realização desse curso, que se prolongará até o fim de novembro, marca uma nova etapa no movimento de cultura cinematográfica no estado de São Paulo. O programa foi estabelecido levando em conta a experiência de outros países e procurando evitar um perigo que se manifestou particularmente no cineclubismo francês e italiano — a tendência em levar a formação cinematográfica a constituir uma espécie de gueto cultural. Esse desvio é encorajado por um tipo humano moderno muito característico, que reduz sua vida ao interesse exclusivo pelo cinema. É sempre bom relembrar que, por maior que seja a massa de noções e informações armazenada por este tipo de cineclubista, não caberia a seu propósito falar de cultura cinematográfica, pois essa ideia é inseparável da de cultura simplesmente. Nessa ordem de preocupações, a Cinemateca Brasileira se esforçou em equilibrar as aulas sobre assuntos propriamente cinematográficos com outros dedicados a diferentes disciplinas artísticas. Além de uma iniciação geral à estética, já foram ministradas aulas sobre teatro e literatura e estão em desenvolvimento outras relativas às artes plásticas, sendo ainda previstas algumas sobre música. A receptividade demonstrada por esse programa amplo e ambicioso seria uma prova de que os clubes de cinema dos grandes centros estão se entrosando cada vez mais nas correntes gerais da cultura e que o destino dos que agem nas pequenas comunidades poderia ser o de constituir o principal foco de irradiação artística e intelectual de suas cidades.
O outro fenômeno, que poderá ser decisivo para a nova etapa do movimento de cultura cinematográfica entre nós, processa-se à margem do curso propriamente dito. Os encontros semanais de representantes de clubes de cinema dos mais variados pontos do território estão dando à estrutura da entidade que os reúne, o Centro dos Cineclubes, uma consistência e uma homogeneidade inéditas no Brasil. Até hoje, as federações de clubes de cinema não tinham passado, entre nós, do estágio de projeto ou da afirmação de boa vontade. Paulatinamente, o Centro dos Cineclubes transformou-se num órgão realmente representativo, capacitado para discutir os problemas comuns dos grupos de difusão cultural cinematográfica junto à Cinemateca Brasileira ou aos poderes públicos.
No que se refere ao cerne do curso para dirigentes de cineclubes — o grupo de aulas, sobre assuntos especificamente cinematográficos, distribuídas por doze professores diferentes —, a experiência tem tido, até agora, aspectos positivos e negativos. Parece não haver dúvidas de que foi boa a ideia de fazer frequentemente o mesmo fato ser abordado por ângulos, métodos e professores diferentes. Quase todos os assuntos da matéria História do Cinema foram novamente tratados em História da Linguagem, do Estilo e da Expressão Social Cinematográfica, muitos deles foram ou estão sendo evocados em História das Teorias Cinematográficas, em Teoria Crítica, em Pesquisa Histórica Cinematográfica ou em Filmologia. Essa orientação está certamente promovendo nos alunos uma familiaridade muito grande com os temas centrais da cultura cinematográfica e suscitando muita liberdade de julgamento, pois nada é feito para evitar as variantes de ideia ou eventualmente a contradição de pontos de vista. A falha maior do curso, porém, é justamente a dessa familiaridade com noções, temas e ideias não estar sendo suficientemente completada por uma intimidade maior com os filmes. Nos primeiros meses de aula, as projeções foram numerosas e outras estão previstas para outubro e novembro, mas a experiência está demonstrando que esse esforço é insuficiente. O mau estado do acervo de fitas da Cinemateca e as dificuldades técnicas de instalação foram responsáveis pelo número relativamente pequeno de aulas de ilustração. A necessidade de dar aos alunos possibilidades de aproveitamento máximo estava levando os responsáveis pelo curso a estudar diferentes soluções para o problema, quando este foi facilitado pela cortesia da Cinemateca de Nova York e do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A Cinemateca Brasileira foi autorizada a utilizar em suas aulas de ilustração o material retrospectivo enviado pelos Estados Unidos para o Festival de Cinema Norte-Americano, realizado ultimamente na capital da República. Dessa forma, vão ser novamente abordadas no curso algumas etapas importantes, desde as filmagens de Edison em 1893 até o início da carreira de Orson Welles em 1940. As aulas de ilustração serão realizadas durante cerca de duas semanas, sendo as mais importantes reservadas para os sábados, a fim de não prejudicar os alunos das cidades distantes.
Essas aulas serão dedicadas não só aos alunos do Curso para Dirigentes de Cineclubes mas também aos do Seminário de Cinema, curso intensivo de atores, curso de apreciação cinematográfica e Escola de Arte Dramática.