Humberto Mauro e a situação histórica [Excerto]
Excerto de 'Revisão crítica do cinema brasileiro' (São Paulo: Cosac Naify, 2003; p. 48-54)
por Glauber Rocha
NOTA: Abaixo, compartilho alguns excertos da fundamental apreciação que Glauber Rocha fez da obra de Humberto Mauro em seu hoje clássico livro Revisão crítica do cinema brasileiro [1963]. Estes trechos constam aqui como material de apoio usado para fins de estudo e crítica em cursos e encontros promovidos promovidos pelo Teoria Brasileira do Cinema.
Num artigo publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, escrevi em 1961:
Com Ely Azeredo, Walter Lima Jr., Alex Viany, Sérgio Augusto e Paulo César Saraceni — críticos que estiveram no modesto Festival de Cataguases, concluímos que Humberto Mauro e logicamente Ganga bruta, como cabeça de sua obra, é tema para livro, aliás providência em projeto. Desta maneira, cremos que no momento a política mais eficiente é estudar Mauro e neste processo repensar o cinema brasileiro, não em fórmulas de indústria, mas em termos do filme como expressão do homem. Oferece esta aplicação de Humberto Mauro a mais tremenda responsabilidade que qualquer homem de cinema no Brasil poderia receber:
a) Mauro filmou em Cataguases, com recursos mínimos, os melhores filmes brasileiros, e no Rio, também barato, um dos vinte maiores de todos os tempos, Ganga bruta;
b) Mauro não entende como se gasta “tantos mil contos” em uma fita, porque um filme não é arquitetura de efeitos, mas expressão visual de problemas;
c) em contraposição, todas as fitas brasileiras, depois de Mauro (e aqui entram naturalmente A primeira missa, de Lima Barreto, ou Ravina, de Rubem Biáfora e Flávio Tambellini) são realizadas com recursos multiplicados e são infinitamente inferiores;
d) o princípio de produção do cinema novo universal é o filme antiindustrial: o filme que nasce com outra linguagem, porque nasce de uma crise econômica — rebelando-se contra o capitalismo cinematográfico, das formas mais violentas no extermínio das ideias.
Logo, a tradição de Humberto Mauro não é apenas estética e cultural, mas é também uma tradição de produtor que não encontra eco no delírio milionário de hoje. Humberto Mauro — com o impacto de sua obra — obriga repensar o cinema no Brasil, pelo menos aqueles que são honestos e não temem assumir necessária consciência crítica. Partindo daí é que a importância de Humberto Mauro passará a viver de fato.1
E no mesmo artigo transcrevi uma opinião de Paulo Saraceni:
Descobrir Humberto Mauro agora é de extrema importância histórica, porque é justamente neste ano que está se formando uma nova geração de cineastas, não em termos relativos, mas num piano de ambição universal estimulada pela grandeza da obra de Mauro.
Iniciando o artigo, escrevia, diante do momento cinematográfico:
De Ganga bruta a A primeira missa (de 1933 a 1961), o cinema brasileiro involuiu violentamente. Quando situamos o último filme de Lima Barreto não incluímos nisto oposição a um trabalho que sofreu injusta campanha política — atitude prévia e desastrada das várias facções. É criticamente que não se pode confirmar A primeira missa em 1961, quando este é um filme mais antigo e mais incompleto do que Ganga bruta — fita moderma de 1933, fita muda que rompeu a história e permanece válida, inclusive vanguarda. Armando-se uma ponte ao contrário, do novo Humberto Mauro ao velho Lima Barreto — é possível traçar a involução da linguagem cinematográfica brasileira.
Aí, sem dúvida, se aplicava a expressão de Saraceni de que “cinema novo é uma questão de verdade e não de idade”.
[…]
Guiado pela intuição, Mauro é dissonante e a raiz de sua montagem é a vivência. Ganga bruta (1933) não é um filme tranquilo; é um clássico às avessas. Sendo expressionista nos cinco primeiros minutos (a noite do casamento e o assassinato da mulher pelo marido), é o documentário realista na segunda seqüência (a liberdade do assassino e seu passeio de bonde pelas ruas), evolui para o western (o bafafá no bar, com pancadaria geral no melhor estilo de um John Ford), cresce com a mesma força do cinema clássico russo (a posse da mulher, de notações erótico-freudianas na montagem metafórica da fábrica de ação) e, se na discussão entre o noivo e o marido criminoso no primeiro anticlímax a evidência cenográfica lembra outra vez do expressionismo alemão, todo o final é construído no clima de melodrama de aventuras. Mas estas dissonâncias não fazem de Ganga bruta um filme de fases: todas estas visões ganham um só movimento fílmico, corporificadas com um constante elo de lirismo que é a substância da mise-en-scène de Mauro. Se a discutida seqüência freudiana da fábrica é o único momento historicamente superado do filme, vale lembrar que Eisenstein tinha Marx e Freud como autores básicos em sua teoria. A Mauro faltava uma cultura marxista e, quanto a Freud, não creio que as metáforas da fábrica fossem um experimento consciente.
A riqueza de Ganga bruta não se limita a esta ou àquela manifestação de talento: a montagem, marcada por uma veia vivencial, encontra hoje relação com o ritmo sincopado de um Godard ou o ritmo especulativo de um Resnais — para citar autores que romperam com a montagem discursiva patenteada, a partir de 1940, na prática comercial. Evidentemente (um técnico inventivo que enfrentava todos os detalhes do cinema) Mauro conhecia, e bem, as regras básicas da montagem narrativa. Seu corte, contudo, é livre. Não há tempos extáticos em Ganga bruta: é todo um tempo que vive movido por um ritmo interior; explode, recua, discursa, reflete, comunica um mundo em mutações imprevistas, cada vez mais sugestivas. E, selando a autoria, o que deduz da posição da câmera de Mauro é uma compreensão dos valores objetivos da paisagem física e social. Sendo entendimento e não-êxtase frente à exuberante paisagem brasileira — romantismo verde-amarelo ao qual voltaria Lima Barreto e no qual mergulham os profissionais da nossa miséria — Mauro, embora ideologicamente difuso, faz uma política despida de demagogia. Obtém o quadro real do Brasil — que é, pela alienação dos costumes, sociologicamente mistificado de romantismo. Neste quadro não esconde a violência da miséria. Num pequeno documentário, já da fase sonora, Engenhos e usinas (1955), romântico e inicialmente narrado pelo popular poema de Ascenso Ferreira “…dos engenhos da minha terra, só os nomes fazem sonhar…”2 e logo depois conduzido pelo movimento visual e lírico da cantiga do Engenho Novo, o poema ingênuo estabelece organicamente a evolução econômica e industrial dos campos, as usinas que destroem os engenhos de rodas-d’água lentas no campo parado; o advento da máquina, a inadaptação do homem primitivo ao progresso (por ignorância), a fuga da febre industrial (causas do subdesenvolvimento) — cujo trágico caminho é a nostalgia. Embora certas críticas não sejam dotadas de uma intencionalidade maior, a verdade em que Mauro penetra no quadro é suficiente para informar, sem rodeios, o problema social. Assim, no início, com o próprio Mauro sentado, de costas, ao pé de uma árvore gigantesca, olhando o campo vasto e parado, está contido, no maior momento de todo o cinema brasileiro, todo um ciclo social e o reflexo desta passagem sobre o homem primitivo. Este seria um documentário de três planos inclusive, caso Mauro quisesse: após a força do plano inicial, tendo montado uma roda de engenho e logo depois uma turbina de usina — toda história da economia açucareira do Brasil, que marcou a agricultura no primeiro período colonial, estaria levantada. Aí, neste plano inicial, está a raiz do enquadramento do filme brasileiro — visão que seria reestabelecida quase trinta anos depois por Nelson Pereira dos Santos, Linduarte Noronha, Paulo Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade.
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Quando assinalo a importância de um plano, não me aventuro no menor preciosismo formal; o que importa aí não é a qualidade da lente ou da iluminação ou os rigores da composição; é, sim, o despojamento que vem do verdadeiro artista no seu contínuo diálogo com a realidade, uma relação dialética que o leva à crítica e à prática transformadoras. É um problema de verdade e de moral; é ser autor; é fazer cinema novo contra o cinema mecânico.
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Humberto Mauro é a primeira figura deste cinema no Brasil; assim como esquecer Gregório de Mattos, Gonçalves Dias, Cláudio Manuel da Costa, Jorge de Lima, Drummond e Cabral na evolução de nossa poesia; assim como esquecer José de Alencar, Raul Pompéia, Lima Barreto, Machado de Assis, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Adonias Filho na evolução de nosso romance. Esquecer Humberto Mauro hoje — e antes não se voltar constantemente sobre sua obra como única e poderosa expressão do cinema novo no Brasil — é tentativa suicida de partir do zero para um futuro de experiências estéreis e desligadas das fontes vivas de nosso povo, triste e faminto, numa paisagem exuberante.
Glauber Rocha, “Humberto Mauro e a situação histórica”, Jornal do Brasil, 7 out. 1961. Suplemento Dominical.
Ascenso Ferreira. "Os engenhos de minha terra”, in: Cana Caiana (Recife: edição do autor, 1939).