Invenção, arqueologia e o trem das sombras
Ensaio de apresentação do catálogo "Arqueologia da invenção: pioneiros do cinema".
por Eduardo Savella
NOTA. Com este texto de Eduardo Savella iniciamos uma série muito especial de postagens aqui no Teoria Brasileira do Cinema: publicaremos na íntegra o catálogo Arqueologia da invenção: pioneiros do cinema, que foi primeiramente impresso para ser distribuído na mostra de mesmo nome, realizada ao longo do ano de 2022, na Cinemateca de Curitiba.
O termo “invenção”, em relação à origem do cinema, sugere dois sentidos. Por um lado, sintetizado no final do século XIX por um coletivo heterogêneo de inventores, o cinema era um aparato técnico, como o avião ou o telefone. “Um suporte transparente, flexível e resistente, e uma emulsão sensível seca, capaz de fixar uma imagem instantânea (todo o resto sendo apenas uma questão de ajustes mecânicos bem menos complicados que um relógio do século XVIII)”.1 Por outro lado, o cinema também é um meio de expressão. Os primeiros filmes eram concretizações da técnica de reprodução da imagem fotográfica em movimento. Mas, constituindo um novo meio, assim como a linguagem verbal ou a música, também deviam inventar ou adaptar, continuamente, seus próprios gêneros e modos, procedimentos específicos de significação e de sintaxe, o que também incluía uma nova poética. Nesse sentido, tudo nos primeiros filmes é invenção, descoberta, experimento, exercício, investigação de possibilidades e limites.
Pode acontecer com alguém que estude a história poética do cinema, no início de suas prospecções, de sonhar com um filme silencioso, feito nos primeiros dez ou quinze anos do século XX, que escapou de se perder, como tantos outros, mas que é, diferente dos outros, um filme visionário que contém em si todas as possibilidades do novo meio, que só seriam exploradas nas décadas seguintes, prenunciando maneiras formais de outras épocas. Como se a cena dos espelhos de A Dama de Xangai (The Lady from Shanghai, Orson Welles, 1947) se encontrasse em O Preço do Trigo (A Corner in Wheat, D. W. Griffith, 1909), ou como se as vistas de William K. L. Dickson se articulassem entre si segundo a montagem intelectual de Sergei Eisenstein. Uma fantasia que sugere a busca de um Santo Graal poético. Uma expectativa presente em cada filme descoberto, aguçando o olhar para o que, em cada obra, demonstra uma compreensão particular do cinematógrafo.
Será mesmo uma fantasia? Diante dessa pergunta, é significativo como André Bazin reflete sobre as origens do cinema, no ensaio “O mito do cinema total”. Segundo o crítico, a ideia aperfeiçoada do cinema, como “representação total e integral da realidade (...), a restituição de uma ilusão perfeita do mundo exterior, com o som, a cor e o relevo”,2 preexistia e orientava a obsessão dos inventores do século XIX pela reprodução fotográfica do movimento, fruto da “imaginação do século”. Se, de acordo com Bazin, as primeiras manifestações do cinema concretizavam imperfeitamente um cinema ideal, quer dizer que prenunciavam, de um modo ou de outro, os filmes de épocas seguintes: “se em sua origem o cinema não teve todos os atributos do cinema total de amanhã, foi, portanto, a contragosto e, unicamente, porque suas fadas madrinhas eram tecnicamente impotentes para dotá-lo de tais atributos, embora fosse o que desejassem”.3
Do ângulo histórico da evolução poética do cinema, as diferenças entre estilos e épocas são inumeráveis, marcadas por progressões formais, aquisições, aperfeiçoamentos, abandonos ou deslocamentos contínuos de procedimentos, temas, funções e efeitos. Isto, em ritmo acelerado em relação às outras artes, que tiveram o tempo integral da história humana para se desenvolver. Nos termos de André Bazin, “cinco anos valem para o cinema uma geração literária”.4 Ou, segundo um dos pioneiros do filme de ficção, Edwin S. Porter, “só em seu progresso artístico, o cinema alcançou em dez anos um estágio que para o drama oral levou milhares de anos de desenvolvimento e evolução”.5 Porter também afirma, a propósito dos primeiros anos do cinema: “não havia guia para os métodos corretos, nem para as armadilhas a serem evitadas. A criação de um filme dependia mais do trabalho de adivinhação”. Desse ângulo, portanto, o sentido poético de “invenção”, de errância, de descoberta. O termo “invenção” é usado pelo poeta Ezra Pound a respeito da evolução da literatura: “Inventores. Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”.6 A respeito da poesia e valendo para as artes em geral, Décio Pignatari aponta: “uma poesia nova, inovadora, original, cria modelos novos para a sensibilidade: ajuda a criar uma sensibilidade nova”.7
De acordo com o “mito do cinema total” de André Bazin, o cinematógrafo indica uma “representação integral da realidade”. Pela primeira vez na história, um intervalo de espaço visível e de tempo entremesclados é “embalsamado”, para usar ainda um termo de Bazin.8 Essa expressão é significativa a respeito de uma ambiguidade do cinema face a sua matéria, a realidade. O escritor Maksim Gorki, em sua primeira impressão diante do cinematógrafo, notou bem esse aspecto de “múmia”, da “vida cinzenta e muda” da tela, que não é a vida que conhecemos, e sim outra coisa.9 Também o trem dos irmãos Lumière, para o Gorki de 1896, é um “trem das sombras”. É que, na verdade, vemos a realidade transfigurada pelo aparato. Ainda André Bazin, ao comentar antigos filmes parisienses do começo do século, indica a contradição: “endurecido e como se já fossilizado pela brancura óssea da ortocromática, um mundo desaparecido volta a nós, mais real que nós mesmos e portanto fantástico”.10 Talvez daí uma parte da hipnose causada pelos primeiros filmes, que mostram pessoas que se movem de um modo estranhamente diverso do que estamos acostumados a ver. A estranheza não vem só da distância social no tempo e no espaço, mas também do modo pelo qual as pessoas e as coisas estão estilizadas, enquadradas, fotografadas em cor de fóssil, em mais ou menos duas dezenas de quadros por segundo. Além disso, segundo Bazin, por ser um passado que não pertence a ninguém (ele é da câmera e, por assim dizer, “objetivo”), haveria uma “fratura”, na medida em que rememoramos algo que não é nosso. “O cinema é uma máquina de encontrar o tempo para melhor perdê-lo”.11 Ou seja, o fascínio particular da “máquina do tempo”, mesmo que insuficiente (afinal, não estamos lá mesmo, no passado, de que vemos apenas alguns vestígios de luz).
Para Bazin, nesse sentido, a memória no cinema é diferente, por exemplo, da memória e da ficção na palavra, como no romance de Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido, em cujo tecido o narrador se alegra em se enredar. A memória cinematográfica, ao contrário daquela de um narrador literário, que é como a nossa, é, por sua vez, externa, decalcada da realidade, constitui um documento. Ao mesmo tempo em que é, porém, transfigurada pela fantasia da projeção de manchas de luz. São sombras: “uma trupe de fantasmas a atuar sob música espectral”.12 O protagonista do romance de Proust é indiferente à realidade, a não ser que se relacione com ela através das palavras. Assim como nós, como espectadores, de modo complementar, vemos a realidade de uma forma nova, por meio da fantasia do cinematógrafo. A mediação, num e noutro caso. É significativo, nesse sentido, o seguinte trecho de No Caminho de Swann, primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, em que Marcel, o protagonista, indica como não gosta de “vistas” não-mediadas (ou seja, a realidade sem artifício), no espaço comum que dividiu, no final do século XIX, com os operadores das vistas parisienses de Auguste e Louis Lumière (não obstante, num desses passeios Marcel avista o primeiro amor, na figura de Gilberte):
Isso de ir aos Campos Elísios foi-me uma coisa insuportável. Se ao menos Bergotte os tivesse descrito nalgum de seus livros, por certo eu desejaria conhecê-los, como todas as coisas cujo “duplo” tinham começado por introduzir-me na imaginação. Ela as aquecia, fazia-as viver, lhes dava uma personalidade, e eu desejava reencontrá-las no mundo real; mas, naquele jardim público, nada se ligava a meus sonhos.13
De onde vem o fascínio, o prazer diante de qualquer um dos primeiros filmes da história? É o sonho impossível da “máquina do tempo”, que eles realizam, ainda que incompletamente? São os vestígios do “Santo Graal poético”, do filme visionário, indicado mais acima, que na verdade está um pouco em cada filme? É a mediação das sombras, fantasmagoria inquietante? É porque os filmes em questão são bons? A prospecção dos primeiros filmes se torna ainda mais misteriosa e improvável — a quantidade inestimável de filmes desconhecidos, destruídos ou perdidos.14 “Não é impossível que logo a pesquisa dos testemunhos cinematográficos de hoje transforme-se numa tarefa digna do arqueólogo: os primeiros decênios do cinema já se tornaram uma 'era de fragmentos'“.15
Bazin, André. “O mito do cinema total”. Em ___. O que é o cinema? Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 36.
Ibidem, p. 38.
Ibidem, p. 39.
Bazin, André. “A Terra treme”. Op. cit., p. 338.
Ver, nesta publicação, “Evolução do Filme”, de Edwin S. Porter.
Pound, Ezra. ABC da literatura. Org. Augusto de Campos. 11ª ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 42.
Pignatari, Décio. O que é comunicação poética. 10ª ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2011, p. 53.
Bazin, André. “Ontologia da imagem fotográfica”. Op. cit., p. 26.
Ver, nesta publicação, “No reino das sombras”, de Maksim Gorki.
Ibidem.
Ver, nesta publicação, “A história do kinetógrafo, do kinetoscópio e do kinetofonógrafo”, de Antonia e William K. L. Dickson.
Proust, Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2006.
“Seu passado foi, consequentemente, não apenas negligenciado mas sistematicamente descartado e destruído. Possuímos hoje apenas um fragmento de nossa cultura cinematográfica. Existem hoje menos de 20% do cinema mudo. Nenhuma forma de arte tinha sido antes tão diretamente prejudicada, devido a uma combinação de fragilidade material (a própria base de celulóide, assim como a emulsão e as tinturas coloridas) e indiferença institucional. Mas desenterrar os primeiros anos da história do cinema revela não apenas um passado desprezado, mas também um futuro esquecido, uma visão muitas vezes perturbadora de seus potenciais e perigos. Se existem motivos para a comemoração do centenário do cinema, um deles pode surgir se recordarmos as complexidades de um antigo futuro imaginado.” Gunning, Tom. “‘Fotografias animadas’, contos do esquecido futuro do cinema”. Trad. Flávia C. Costa. Em Xavier, Ismail (Org.). O cinema no século. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 23.
Jakobson, Roman. “Decadência do cinema?”. Trad. Francisco Achcar. Em ___. Linguística. Poética. Cinema. Roman Jakobson no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 154.