por Paulo Emílio Sales Gomes
Contam-se nos dedos de uma mão os brasileiros que conhecem bem a obra de Humberto Mauro, e eu não estou incluído entre estes. Não existe, entretanto, diretor cinematográfico brasileiro que me interesse tanto quanto ele. Conheço mal seus filmes porque durante muito tempo me distanciei da cinematografia brasileira não só geograficamente mas também intelectualmente. Quando adquiri o gosto pela problemática social, econômica e estética do cinema do meu país, os filmes de Mauro tinham se tornado dificilmente acessíveis. Felizmente não estão perdidos; existem negativos ou cópias de quase todos, e sei que surgirá um dia a oportunidade de vê-los e estudá-los.
Se os contatos com a obra foram parcos, em compensação estive com o autor muitas vezes, poderia dizer que somos amigos e tenho a tentação de escrever que o conheço bem. Um segundo momento de reflexão, porém, me faz voltar atrás. Então me pergunto se a sua personalidade é tão simples como parece à primeira vista. Talvez a sua maneira de ser bonacheirona de homem do interior satisfeito em afirmar-se como tal constitua uma máscara atrás da qual se escondem sentimentos complexos e atormentados. De qualquer maneira, o método mais adequado para se abordar Humberto Mauro é certamente o da dúvida sistemática quanto à sua simplicidade como artista e homem.
Como muitos de seus colegas estrangeiros, as três figuras mais célebres do cinema brasileiro — Mário Peixoto, Humberto Mauro e Lima Barreto — sofrem todos de mania de grandeza. Esse traço se manifesta de maneira diversa em cada um deles, e a de Mauro é de longe a mais sutil.
Peixoto é o autor de Limite, filme famosíssimo e de muito prestígio mas que pouca gente assistiu. Eu me incluo entre os privilegiados, pois há cerca de vinte anos vi o filme uma vez e, aliás, gostei. A impossibilidade de revê-lo estava, porém, esfumaçando os seus contornos na minha memória. Ultimamente, ao acaso de uma visita à Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, assisti à projeção de meia dúzia de tomadas de Limite, talvez variantes que não tenham sido utilizadas na montagem da versão original. Seja qual for o caso, algumas dessas filmagens de Peixoto me deram a impressão de algo muito poderoso. Por maior, contudo, que seja a grandeza da fita, acho pouco provável que possa justificar a mania do seu autor.
A posição de Mário Peixoto diante do seu único filme possui tonalidades de delírio. A única cópia positiva existente está mutilada e sobraram apenas fragmentos do negativo original. Independentemente da exata estatura artística da obra, Limite é um acontecimento de enorme importância no panorama histórico modesto do cinema brasileiro. É normal que se promova imediatamente a contratipagem e restauração do que resta da fita, e isso já poderia ter sido feito não fossem as dificuldades de toda ordem que Peixoto opõe à concretização do empreendimento. Provavelmente nunca compreenderei a natureza exata de suas renovadas negativas e constantes reticências. Às vezes tenho a impressão de que um tortuoso orgulho leva-o a desejar para sua obra uma lenta agonia, acompanhada ansiosamente por um número sempre crescente de jovens admiradores em confiança. O mito da obra-prima perdida é uma constante na vida literária do Brasil colonial e dos primeiros tempos da Independência, e não é impossível que, na nação moderna, a fita Limite se integre nesse mecanismo compensatório, a partir do momento que sua última cópia entre na fase final da desintegração química. Daí por diante, não terá mais sentido verificar historicamente a asserção a respeito do entusiasmo de Eisenstein pelo filme, ou de outros fatos controvertidos sobre a impressão que teria causado no Brasil e no estrangeiro, por ocasião de seu lançamento, trinta anos atrás. O universo de Limite não será mais da história, da estética e do cinema. A fita se integrará plenamente à legenda e ao mito, e a herança que Mário Peixoto deixará para a posteridade será não sua obra, mas o seu delírio difusamente comunicado a alguns milhares de pessoas.
Lima Barreto também delira, mas diversamente. Sua mania de grandeza é um fato, mas ao mesmo tempo Barreto, que possui um tino publicitário muito agudo, utiliza deliberadamente esse traço de sua personalidade em exibições calculadas. Julgar que Lima Barreto perdeu a cabeça devido ao gigantesco sucesso internacional de O cangaceiro seria um erro. Ele sempre foi assim. Tenho certeza de que a glória não o surpreendeu. Eu teria estranhado se ela não tivesse ocorrido.
Depois de O cangaceiro, Barreto preparou “O sertanejo” e a propósito desse projeto sem efetivação eu não hesito em mergulhar de certa forma no mito da obra-prima perdida. Há muitos anos assisti à leitura pública do roteiro de “O sertanejo” feita pelo próprio Barreto. Leitura não dá ideia do que foi este extraordinário espetáculo. O autor, que quando interpreta pequenos papéis em filmes (o que fez pelo menos duas vezes) é em geral mau ator, representou todos os personagens da fita planejada com um brilho e um vigor histriônico invulgares.
Lima Barreto tem muito fôlego, a vulgaridade não o assusta, mas no roteiro de “O sertanejo” ele se salvava sempre por uma constante inspiração. Não era só nos momentos épicos que revelava o seu pulso. Nas cenas íntimas aflorava um lirismo do cotidiano que o cinema brasileiro não conseguiu exprimir e que só encontramos em alguns versos de nossa poesia moderna. Nunca li o roteiro de “O sertanejo” e a impressão duradoura que o projeto me causou deve ser atribuída em parte à presença estimulante e desafiadora de Lima Barreto. É, porém, indiscutível que estávamos diante de uma explosão de energia e imaginação, que foram deploravelmente sufocadas pela conjuntura adversa em que entrou, naqueles anos, a cinematografia brasileira. Só agora, depois de tantos anos, Lima Barreto realizou seu segundo filme de longa-metragem, A primeira missa, obra provavelmente de circunstância e dedicada a suscitar vocações sacerdotais. Barreto possui uma capacidade múltipla em acreditar, mas é difícil dizer se ele se sentiu verdadeiramente à vontade ao filmar essa anedota moral, exemplar e convencional. A fita, entretanto, se situa num vilarejo e boa parte da ação se passa no Brasil de antes de 1930 e é possível que Barreto tenha conseguido exprimir a sua adesão afetiva aos valores antigos de um país agrário e subdesenvolvido.
E assim voltamos a Humberto Mauro. Se Peixoto, em trinta anos, só realizou um filme e Barreto acabou agora o seu segundo, a situação de Mauro é bem outra. Comparativamente a sua produção é abundante, uma dúzia de fitas realizadas em 35 anos, às quais se acrescentam os documentários — certamente mais de uma centena — que realizou para o Instituto Nacional do Cinema Educativo.
Conheci Mauro há vinte anos, já no Rio de Janeiro, e no Instituto. Ele falava de suas fitas num tom destacado e impregnado de modéstia. Em determinado momento, a propósito de não sei mais qual recurso técnico que empregara numa das suas fitas, ele comentou num tom negligente: “Dizem que um americano, um tal Griffith, também fez isso em um dos seus filmes. Precisaríamos verificar se foi antes, depois, ou ao mesmo tempo que eu”. Até então eu, que naquele tempo não tinha o menor interesse por cinema brasileiro, seguia a conversa distraidamente, mas a observação provocou minha curiosidade. Observei então que Mauro, que evidentemente conhecia muito bem as fitas do “tal Griffith”, procurava manhosamente pós-datá-las, a fim de melhor se insinuar como um pioneiro de classe internacional. Quando, ultimamente, eu soube da existência de um obscuro poeta brasileiro, Salomé, que antedatava as suas poesias inspiradas em Victor Hugo na vã esperança de despistar a sua fonte, eu me lembrei do Humberto Mauro daqueles tempos. Hoje ele percebe que o encantamento que suas fitas provocam repousa em valores mais permanentes do que as proezas técnicas, mas aquela preocupação antiga será certamente útil para orientar os estudiosos quando estes procurarem entender o que levou o jovem Mauro a começar a filmar, em 1925, na cidadezinha de Cataguases, no interior do estado de Minas Gerais.
A Cataguases daquele tempo precisa um dia ser examinada de perto. Não foi só produzindo Humberto Mauro que o vilarejo se salientou. Naqueles anos, o Brasil vivia o período heroico do movimento modernista nas letras e nas artes, iniciado em São Paulo poucos anos antes. Surpreendentemente foi no mundo isolado e perdido de Cataguases que surgiu o primeiro grupo, que editava inclusive uma revista chamada Verde, solidário dos jovens escritores e artistas paulistas, cuja rebelião deveria marcar indelevelmente a evolução da vida cultural brasileira. É impossível imaginar que, numa cidadezinha como Cataguases, não houvesse contato entre Humberto Mauro e o grupo Verde, mas não há absolutamente nada que indique que o futuro cineasta tenha sido tocado, de alguma forma, pelo espírito modernista.
Não foi por ser intelectualmente moderno — pois não o era — que Mauro começou a fazer cinema, mas sim porque possuía o gosto e o talento da mecânica. Inicialmente, o que o conquistou para o cinema foi o fato da câmera ser uma máquina. Isso não quer dizer que fosse destituído de sensibilidade. O gosto e as ideias de Mauro eram, porém, bastante convencionais, apesar da vivacidade e sabor de sua indiscutível inteligência. É bastante provável que se ele tivesse escolhido outro meio de expressão, que não o cinema, sua contribuição não teria ultrapassado o limite estreito da curiosidade regional. As imagens enquadradas e encadeadas com gosto por Mauro em suas fitas seriam, transportadas a outro terreno artístico, exemplos do mais aflitivo conformismo. O que permitiu a Mauro superar-se intelectualmente foi a alegria criadora em manejar uma mecânica.
A vocação técnica intuitiva de Humberto Mauro permitiu-lhe absorver bem o que realizavam os autores das fitas estrangeiras a que assistia, e seguir-lhes as pegadas, e tentar repetir suas audácias de linguagem. É o que dá a alguns de seus filmes — notadamente Ganga bruta — um tom às vezes clássico e outras vanguardístico, que chamou a atenção dos críticos que ultimamente têm se interessado pela obra de Mauro. A introdução de Ganga bruta é um modelo de articulação e contenção de linguagem, de uma precisão que nada fica a dever aos mestres estrangeiros, e através do filme, como, por exemplo, na sequência do andar titubeante de um personagem embriagado, encontram-se ecos dos anseios da vanguarda internacional em fazer da câmera um elemento dramático diretamente participante.
Se os valores do filme se limitassem exclusivamente a esses aspectos, Ganga bruta não teria um interesse maior. O que o torna atraente e saboroso é o fato de ser ao mesmo tempo muito brasileiro e pessoal. Se a heroína evoca a visão cinematográfica norte-americana do encanto feminino em curso até aproximadamente 1920, e decorrente da concepção griffithiana da beleza da mulher, o herói de Ganga bruta, com seus impulsos, sua melancolia, sua noção de honra, seus bigodes — característica latino-americana em geral e brasileira em particular —, é indiscutivelmente uma expressão nacional. O universo dos personagens secundários é uma expressão da realidade brasileira, acentuada e deformada por um obscuro pessimismo que Mauro partilha com muitos outros realizadores cinematográficos nacionais, antigos e modernos. O povo brasileiro era e ainda é feio. Dir-se-ia, porém, que Mauro deliberadamente escolheu a dedo os seus extras, segundo um critério de anatomia ingrata. Tal sequência de briga num bar assume a forma de um balé grotesco e penoso. Como boa parte do cinema dramático brasileiro, Ganga bruta é impregnada de um relento de estagnação e decadência. Nada disso, porém, impede que se manifeste nessa fita, como, aliás, de maneira ainda mais acentuada em fitas anteriores e posteriores do autor, o lirismo que a vida da província inspira a Humberto Mauro.
Faz tempo que não o vejo. Imagino que depois que Georges Sadoul o descobriu ele se tornou impossível. Mas sempre dentro de sua maneira característica, a de um caipirão que aparentemente não quer nada mas que na realidade exige tudo, numa sede insaciável de reconhecimento.
Humberto Mauro, Mário Peixoto e Lima Barreto são, até segunda ordem, as personalidades mais fascinantes da história da cinematografia brasileira. A mania de grandeza de que participam não constitui um traço negativo de caráter. É uma arma de luta contra a frustração a que têm sido condenados até hoje todos os artistas e artesãos do cinema brasileiro. A mania de grandeza é na realidade um grito de protesto.