por Paulo Emílio Sales Gomes
Não adianta muito ter boas ideias fora do tempo. Bertrand Russell lembra que durante cem anos a ideologia feminista foi divulgada sem consequências práticas, bastando, porém, para assegurar o seu triunfo, que a Revolução Industrial exigisse a participação direta da mulher na produção de bens de consumo.
Seria pouco sensato atribuir a tradicional ineficiência da cinematografia brasileira à ausência de pessoas com boas ideias a respeito dessa modalidade especial de indústria e comércio. O aparecimento, na década de 1920 ou 1930, do Rui Barbosa (para não fugirmos à mitologia nacional) da cinematografia não teria alterado nossa situação de importadores de divertimento. Fazia parte, porém, de nossa imaginação coletiva de povo subdesenvolvido, esse anseio constante por certo tipo de personalidades cuja função sentíamos bem qual era mas sem defini-la claramente. Não esperávamos que elas promovessem o progresso nacional. Pedíamos apenas que se ilustrassem, sobretudo diante do estrangeiro, para nosso orgulho. Estou colocando essas considerações no passado, mas tudo isso é muito próximo. O que nos fascinou nos físicos saídos de nossa jovem universidade foram as informações correntes a respeito do prestígio de que gozavam no estrangeiro. Quando surgiu em São Paulo a efervescência cinematográfica dos fins dos anos 1940, descobriu-se subitamente que o Brasil possuía, também em cinema, um Santos Dumont, um Rui Barbosa, isto é, revelou-se ao grande público que Alberto Cavalcanti existia: como aqueles no Campo de Bagatelle ou na tribuna de Haia, este triunfara nos estúdios cinematográficos de França e Inglaterra. É uma perda de tempo imaginar o que teria acontecido se Santos Dumont tivesse recebido a missão de fabricar aeroplanos no Brasil, na década de 1920. Mas o fato de Rui Barbosa não ter conseguido eleger-se presidente da República deve reter nossa atenção, pois confirma a ideia de que a função desses homens não era a de resolver problemas nacionais, e sim a de serem admirados, não eram messias, mas astros. Se fosse permitido inventar uma expressão útil, eles poderiam ser definidos como “bodes exultórios”.
A publicidade que acompanhou a volta de Cavalcanti ao Brasil para dirigir a produção da recém-fundada Companhia Vera Cruz procurou apresentá-lo na dupla qualidade de orgulho nacional e messias salvador. Seria errôneo interpretar esse fato em termos de simples técnica comercial. Para os industriais paulistas, a vinda do brasileiro que se ilustrara no cinema europeu devia constituir o fato novo e decisivo pelo qual o cinema nacional aspirava confusamente. Retrospectivamente é fácil constatar que o verdadeiro fato novo foi o de pessoas do gabarito econômico-social de Franco Zampari, Francisco Matarazzo Sobrinho, Anthony Assunção e Artur Audrá terem feito uma incursão na cinematografia brasileira. O insucesso dos empreendimentos, o retraimento mais ou menos rápido dos grandes nomes da indústria paulista, nada disso retira da bela aventura de 1950 seus resultados positivos permanentes. Tudo o que tem sido feito de útil e importante na cinematografia brasileira durante os últimos dez anos — e que constitui apenas preparo para as grandes expectativas da década de 1960 — decorre harmoniosamente da fundação da Companhia Cinematográfica Vera Cruz. Espíritos teimosos persistem em falar em erro, pois ainda não compreenderam que o único erro fatal é não existir. Tivessem todos os erros as consequências estimulantes da audácia de Franco Zampari!
Fizemos referência em crônica anterior ao fato de que dos quadros da Vera Cruz em declínio surgiram pessoas como Cavalheiro Lima e Jacques Deheinzelin, que iniciaram a investigação a respeito da conjuntura cinematográfica brasileira. O constante agravamento da situação levava a Companhia a solicitar o amparo dos poderes públicos e, pouco a pouco, tanto o publicista quanto o cinegrafista vieram a participar ativamente dos entendimentos e discussões com órgãos executivos, legislativos e de crédito. Essas tarefas práticas os obrigavam a ampliar e aprofundar seus inquéritos. Novos horizontes foram se abrindo sucessivamente e quando a Vera Cruz entrou em colapso, ambos estavam em excelente situação, se não para evitá-lo, pelo menos para compreendê-lo e em breve encontrariam um terreno novo para exercer sua competência nas comissões de cinema criadas sucessivamente junto aos poderes públicos municipal, estadual e federal.
Já sabemos que é tradicional a participação de jornalistas cinematográficos, simbolizados pelo veterano Pedro Lima, na luta pelo cinema brasileiro. A peculiaridade do período que nos ocupa, a década de 1950, facultou aos críticos paulistas a ação em estágio superior. Como seus predecessores cariocas, Flávio Tambellini, o nome paulista que melhor ilustra o tipo de militância que comento, fazia na sua coluna jornalística incessantes apelos aos poderes públicos. Evitava, porém, as sugestões globais mais ou menos platônicas assim como as indignações polêmicas e dirigia-se sobretudo aos poderes municipais e estaduais, ignorando praticamente naquela fase o longínquo Executivo federal. Os artigos tinham endereço certo e objetivo determinado. Não houve prefeito municipal, por mais transitória que tenha sido sua passagem pelo poder, nem governador que não tenham recebido apelos e sugestões. A quantidade de propostas feitas por Tambellini foi grande e a improvisação não podia e não devia ser evitada, pois não chegara ainda a hora da planificação. O crítico, aliás, não partia do pressuposto otimista de que as autoridades públicas iriam executar de motu proprio as ideias contidas nos artigos. Estes tinham o papel de iscas. A principal virtude da ação de Tambellini foi a de ter como objetivo central não a simples propagação de ideias mais ou menos boas, mas a articulação entre os poderes públicos e o quadro de técnicos e críticos paulistas que assumira por direito de atividade e presença a missão de levar avante as tarefas iniciadas pelos industriais de 1950.
Quando em 1955 João Accioli Neto, secretário da Educação na administração do prefeito Lino de Matos, criou comissões de assessoria artística, a de cinema adquiriu desde logo uma estrutura e um relevo singulares. Os estudos e esforços preliminares de Jacques Deheinzelin, Flávio Tambellini e Cavalheiro Lima, combinados agora com a experiência dos críticos Francisco Luís de Almeida Sales e Benedito Junqueira Duarte, assumiram a forma de uma lei, cujo comentário será feito aqui oportunamente e que constitui na legislação brasileira importante medida parcial de amparo à cinematografia nacional. O exemplo municipal estimulou a criação de comissões de cinema na esfera estadual e federal, sendo a última substituída mais tarde por um Grupo de Estudo da Indústria Cinematográfica, subordinado ao Ministério da Educação. O tom otimista com que faço essa enumeração não deve criar ilusões. A articulação entre os diferentes poderes públicos e o quadro militante da cinematografia brasileira é um acontecimento importante à luz, porém, de um processo em desenvolvimento. Por enquanto, nada de decisivo foi conquistado. A configuração da conjuntura cinematográfica brasileira, sobretudo agora que pesa a ameaça da implantação da dublagem dos filmes estrangeiros em língua portuguesa, oferece ao observador que não possua elementos de apreciação a respeito da dialética interna dos acontecimentos a perspectiva mais desoladora para o futuro do filme nacional. O histórico pormenorizado dos trabalhos das diferentes comissões de cinema junto aos respectivos poderes públicos correria o risco de dar ao leitor um sentimento de gratuidade estéril.
O espírito não aguilhoado pela pressa encontra, contudo, alimento para o otimismo desde que se impregne, frente ao cinema brasileiro, da estimulante incerteza stendhaliana diante do amor. Tudo é inseguro, mas tudo é possível.
As comissões de cinema tiveram sobretudo uma função de escola. Os empreendimentos práticos assumiram, inclusive quando malogrados, a validez de experiência que melhora o conhecimento. Pessoalmente foi nessa escola que tudo aprendi a respeito da conjuntura cinematográfica brasileira. Sua missão foi a de difundir o gosto amargo mas exaltante da realidade. O abandono das ficções e do cortejo penoso de frustrações que necessariamente as acompanhavam não é o resultado de um progresso puramente intelectual. Nosso estado de espírito reflete modificações sociológicas profundas que estão criando condições totalmente novas para o cinema no Brasil. A I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica realizada em São Paulo no mês passado foi a oportunidade para a cristalização das ideias e para a tomada de consciência da fase superior em que vai entrar a cinematografia brasileira. Ao que tudo indica, chegou a hora das boas ideias renderem.