NOTA. O texto abaixo foi originalmente escrito em maio de 2024 como roteiro para um breve vídeo de apresentação do filme O monstro de duas caras (The Two Faces of Dr. Jekyll; 1960), de Terence Fisher. Tal apresentação foi gravada a pedido do Cineclube Lucky Star, sediado em Braga, Portugal. Após o texto, envio algumas atualizações sobre o Asilo Febril que podem interessar aos assinantes do TBC.
“No momento em que você apaga as luzes, o homem regride ao primitivo. O que é o cinema? É o lugar onde as luzes se apagam. O prazer do horror é uma das coisas mais profundas. A luz elétrica não é capaz de matar o horror mais do que é capaz de matar os pesadelos. E você sabe qual é o pior horror? É quando você liga a luz elétrica e o fantasma continua lá.”
Foi nesses termos que Terence Fisher explicou em uma entrevista sua visão acerca da profícua relação entre o cinema e o horror, ou — como ele mesmo preferia chamar — o macabro. É no cinema, o lugar onde as luzes se apagam, que entramos nos estado ideal para gozar aquilo que nos apavora e que permanece, latente, conosco mesmo quando elas voltam a acender. Não há como nos apartarmos das sombras que nos seguem.
Foi este o erro do Dr. Jekyll (o original da novela de Robert Louis Stevenson e de tantos outros de infindáveis adaptações), o erro de se crer capaz de separar-nos das sombras, do mal, da perversão, como um químico que faz precipitar um concentrado de duas distintas substâncias, antes dissolvidas. Esta intuição básica sobre a dualidade humana não é diferente na adaptação dirigida pelo próprio Fisher e lançada pela Hammer Films em 1960, The Two Faces of Dr. Jekyll (O monstro de duas caras).
A produtora e o já veterano diretor viviam então seu apogeu, após uma extraordinária sequência de sucessos comerciais que insuflaram nova vida a dois célebres monstros: a criatura gerada por Victor Frankenstein, em The Curse of Frankenstein (1957) e Revenge of Frankenstein (1958); e o Conde Drácula, em filme homônimo de 1958 e The Brides of Dracula, lançado poucos meses antes de The Two Faces of Dr. Jekyll. Este último filme, no entanto, não logrou os retornos financeiros esperados pela Hammer nas bilheterias, nem alcançou o status canônico da safra anterior de produções.
Se na novela Stevenson, a contraparte maligna do Dr. Jekyll, Edward Hyde, é descrita como um ser que suscita imediata repugnância, como se portasse um tipo de deformidade perceptível, mas difícil de expressar, o roteiro de Wolf Mankowitz propôs uma variação curiosa: torná-lo um homem excepcionalmente belo e, até mesmo, sociável, polido. Este traço do personagem instantaneamente atraiu Fisher, como o próprio viria a observar quando entrevistado em 1976: “Eu gostei do roteiro porque ele tornou o Mal encantador e sexualmente atraente [...]. A grande força do Mal está em sua atratividade.”
A dualidade humana e a atratividade do Mal. Esses dois temas encontram a perfeita síntese no rosto de Paul Massie, que interpreta o duplo protagonista. Seu Jekyll tem o face encoberta, quase bloqueada, por uma fachada postiça que o mestre maquiador Roy Ashton comumente reservaria um dos monstros de estoque da Hammer. O efeito dessa maquiagem, combinada à frieza desesperada que Massie imprime ao doutor, beira, por vezes, o de uma máscara insólita que Fisher não deixará de explorar em excruciante detalhe. Tudo em Jekyll é truncado, desconfortável, hesitante. Como as crianças mudas que brincam em seu quintal, ele mesmo padece de um impedimento da expressão que o molesta como um espinho que perfura a carne.
O rosto de Hyde, ao contrário, é animado por uma lascívia infantil. Ele nasce do experimento de Jekyll ainda virgem dos prazeres e das mazelas do submundo londrino, que passa a frequentar junto ao amante de sua esposa, Paul Allen (ninguém menos que o lendário Christopher Lee, cujo nome se confundia com o da própria Hammer). Nos antros urbanos, elegantes ou ordinários, vemos Hyde descobrir seu sadismo com aquele interesse natural de um jovem que desbrava as próprias funções biológicas. Um sorriso se abre, largo em seu rosto, sempre que se deixa tomar desse apetite pueril pela experiência mundana. Ele se compraz na mera existência enquanto Jekyll não mais que a tolera.
O apetite insaciável de Hyde atinge o grau máximo na incandescente sequência da dança com a cobra, na qual se introduz a personagem de Norma Marla, Maria, a prostituta de luxo. A reação de Paul Massie à apresentação e, em particular, ao selvagem abocanhamento da cobra pela dançarina é desses momentos impagáveis: Hyde é o mais perverso dos adolescentes; virgem de mulheres, mas prenhe de uma imaginação indomável e do mais pervertido desejo. O sexo com Maria será seu rito de passagem, seu desvirginamento. Daí em diante, tentará conquistar para si a atenção da pessoa que seu alter ego foi incapaz de possuir: a própria esposa, Kitty.
Esse fascínio inabalável dos mal-amados pela mulher que os rejeita em favor do mais inútil dos homens é o elemento concreto que cauteriza Jekyll e Hyde, que os une numa espécie de coincidência dos opostos (ou nem tão opostos). É explícita no roteiro de Mankowitz — e nas inflexões que Fisher lhe confere — a natureza dessa cumplicidade: Hyde funciona com um vício para Jekyll, e, como todo vício, é um escape da prostração e o condutor de rumos inexplorados. Ou, como o próprio doutor escreve, sempre hesitante, em seu diário: “Estou determinado a descobrir tudo que Hyde tem a revelar.”
É digno de nota que a ideia de transformar o que seria o monstro num atraente fanfarrão em meio a uma trama de vertiginosas desventuras amorosas também ocorreu, uns poucos anos depois, ao grande Jerry Lewis em sua comédia The Nutty Professor (1963). Mas isto não equivale a dizer que The Two Faces of Dr. Jekyll não tenha seu quê de cômico. Pelo contrário. O filme de Fisher é repleto de um humor saborosamente obsceno e mesmo cortante em sua sagaz amoralidade.
Mesmo os contrastes mais dramáticos ganham um acento devassamente irônico — o mais perverso deles talvez seja o que se dê entre Kitty e Maria, ambas ligadas pelo binômio casamento/prostituição. Kitty, a esposa adúltera apaixonada pelo amante acabará na alcova da prostituta; Maria, a prostituta que ama, frequentará o leito da esposa.
The Two Faces of Dr. Jekyll é uma tragédia da perversidade encrustada em uma comédia lasciva. Estão nele todos os prazeres ambíguos e belezas sombrias de um verdadeiro filme maldito, desses que percorrem o caminho algo tortuoso do fracasso à glória sem jamais terem passado pelo sucesso pretendido. “O fracasso inicial”, como escreveu Cocteau, “é a honra das obras-primas.”
Além desta, outras apresentações para filmes exibidos no Lucky Star foram gravadas por diversos críticos e estão disponíveis no canal do cineclube no Youtube. Vale a pena conferir.
E, falando em Youtube, aproveito para anunciar que mais um filme da nossa produtora, o Asilo Febril, foi disponibilizado gratuitamente em nosso canal na plataforma: Tarde demais, meu amor (dirigido por Christofer Pallu). Este é apenas o mais recente de uma série de lançamentos gratuitos no canal da produtora este ano. Outros filmes recém-lançados foram O prisioneiro e Anezia dos Santos — Cadernos de uma operária da Fábrica de Tecidos Votorantim.
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