"Que catzo, quem é que fez esse filme?" — criando 'Bang bang'
Coleção de falas de Andrea Tonacci sobre a criação de 'Bang bang' (1970/71).
Os excertos abaixo foram reunidos a partir de alguns depoimentos de Andrea Tonacci (1944-2016) acerca da criação de seu primeiro longa-metragem, o clássico marginalizado e redescoberto Bang bang, finalizado em 1970 e lançado em 1971 em circuito restrito. Sugiro que se leia esta seleta de comentários junto ao texto de Paulo Emílo, Os exibidores se esqueceram deste filme, disponível aqui no Teoria Brasileira do Cinema.
Eu assisto a ‘Bang Bang’ e me pergunto: “pô, que catzo, quem é que fez esse filme?”.
Andrea Tonacci
O roteiro — ”Uma associação entre o cômico e o burlesco policial.”
“O Bang Bang começa com um roteirinho muito simples, ele começa com... Eu acho que até inspirado entre um conto policial, tipo Shell Scott, esses detetives de pocket, e alguma coisa de Carlitos, algum conto de Carlitos. Uma associação entre o cômico e o burlesco policial, uma coisa assim. Como, digamos assim, se eu tiver que recuar seria um pouco a raiz, a nascente que me leva a buscar algo nesse rumo, nesse sentido. Escrevendo, botando personagens, e montando em cima de uma trama muito simples [de] algo que havia sido eventualmente roubado, que desaparece. Tem pessoas que estão todas em volta daquilo. Tem uma perseguição o tempo inteiro. Você não sabe no fim mais quem é quem, quem persegue quem.”1
“Se eu tivesse grana, tempo e negativo, teria filmado ‘decupado’.”
“Se, em Bang bang, eu tivesse grana, tempo e negativo, teria filmado “decupado”. Eu comecei a filmar, trabalhamos dois, três dias… quando eu percebi que não ia dar, desmontei tudo, paramos. O Sylvio [Lanna] iniciou o filme dele [Sagrada Família]; eu armei outra equipe e recomecei a trabalhar o roteiro. É a partir daí que o filme começou a privilegiar o plano-sequência: porque eu juntava duas, três coisas numa sequência só. Era a forma de ganhar tempo e realizar tudo em um dia."2
De São Paulo a Belo Horizonte
"Pretendia filmar em São Paulo, era todo um roteirinho decupado — campo, contracampo, diálogo, etc — sem nenhuma consciência do que seria uma invenção cinematográfica dramaticamente escrita para poder ser feita via roteiro, mas o dinheiro que a gente tinha para fazer o filme em São Paulo não seria suficiente. Que era um dinheiro, sei lá, hoje uns 10 mil reais; hoje, você com 10 mil reais faz alguma coisa em vídeo, mas não faz em 35 [milímetros], como era a pretensão. Aí eu tive um sócio que chamava Sylvio Lanna, cujo pai era prefeito em Ponte Nova e que conseguiria, porque ele também queria fazer um filme. Então ele entraria com a parte de dinheiro de negativo da parte dele, e o pai descolaria para gente hotel, acessibilidade a alguma ajuda em estrada, polícia para fechar estrada se precisasse filmar, aquelas coisas que prefeito consegue. E isso leva, digamos, o projeto para Belo Horizonte, mas já no projeto estavam o Pereio, a Jura, que são de São Paulo, já estavam no projeto desde o início. Então, Jura e coisa, mais do que montar uma equipe em São Paulo para ir para BH, era melhor montar uma equipe em BH e levar só Pereio, Jura e eu para lá, e filmar lá, com as facilidades que a gente tinha. Então, essa foi a forma, a justificativa que eu me dou para o filme ter ido para lá."3
Começaram a se revelar os personagens nos atores.
"Então, monta-se uma equipe em Belo Horizonte, faço uma seleção de atores. Me apresentam três ou quatro pessoas que fazem o motorista, o mágico, o próprio Montijo faz o papel do bêbado. Então, assim, a gente mesmo... Obviamente uma época de todo mundo muito doido, no bom sentido. Com bom exagero, saudável. E aí a gente começa a compor, a trabalhar um pouco esse laboratório, porque nós ficamos todos no mesmo hotel, não é? Uma equipe pequena, todos no mesmo hotel. E a gente começou a trabalhar durante dez dias um pouco esse tipo de relações desses personagens. E para minha surpresa, eu não sei nem se é surpresa ou para minha gratidão, a partir talvez do meu desconhecimento do que fosse realmente um roteiro, trabalhar com atores, ou trabalhar com uma equipe em uma coisa da qual não tinha uma historinha exatamente a ser narrada, era um sentimento, uma coisa assim. Como isso trabalhado com aquelas pessoas começou a revelar [os personagens] nas pessoas que estavam ali, no Pereio, na Jura, no... Os nomes, pelo amor de Deus... Que são os personagens do filme, o caráter desse ridículo, desse Brasil absurdo, dessa coisa toda, começa cada um a fazer isso pipocar e quando a gente se dá conta já começam a cobrar a nossa conta — quer dizer, a família do Sylvio diz: “Ó, vocês tem que resolver logo. Filmar isso logo”. E aí, em 11 dias, em 11 dias depois de feito o figurino, a gente filma, faz o filme desse jeito. Desse jeito também, por quê? Primeiro porque os personagens ficaram cada um mais definido – então, ficou muito em cima de alguns personagens. Então você exclui o resto de uma narrativa que ficou no campo da quase participação e não da descrição detalhada, esse tipo de coisa. Então, já aí você consegue encurtar, fazer planos mais longos, panorâmicas, tem sequências maiores. E o tempo que a gente tinha reduzido fez com que três ou quatro sequências tivessem que ser condensadas em uma só. Então, acabou virando um filme de blocos, que em um determinado momento, pela estrutura que o filme tinha, podiam ser montados inclusive alternadamente, porque a narrativa permitia. Começaram a ser pensados assim. E é por isso que ele tem esse aspecto visual, estético, de muito enquadramento fixo, muito movimento de entrada e saída, muita coisa que te carrega para uma subjetividade de participação, de abrangência."4
“A forma do Bang bang tem muito a ver com as condições de produção.”
“A forma do Bang bang tem muito a ver com as condições de produção e com a capacidade dos atores entenderem isso. Claro que há momentos em que a forma é construída intencionalmente. Por exemplo, aquela grua foi pensada. Ali eu tenho que tomar essa distância. Começa uma ação, depois revela o lugar: isso foi pensado. Mas outras passagens foram, entre aspas, improvisadas após um mês de elaboração, de trabalho, afora o roteiro. Eu não sinto improviso no Bang bang. Se existe improviso ele está na capacidade que os atores têm de construir os personagens, de ir além dos personagens que eu conseguia lhes sugerir."5
“Esse improviso vinha de uma convivência que a gente teve junto.”
"Na verdade, o filme tem cem por cento de racionalidade e de cem por cento de improvisação, se dá para entender essa situação. Essa improvisação ocorre na hora de rodar mesmo. [Mas também] Começa na noite anterior, quando você não consegue dormir e você está com um negócio extremamente formal no papel, que não corresponde exatamente ao que você está conseguindo botar na câmera naquele dia em que você filmou antes. Como é que você vai emendar essa história? […] E vamos dizer assim, que até à noite, até rodar o plano, até a manhã em que a gente for filmar, o filme tinha uma imagem na minha cabeça, mas na hora, de fato, de realizá-lo, surgiu uma outra história. Quer dizer, quando você dá o clique na câmera, o mundo acontece, vamos dizer assim. O Pereio, eu devo esse filme ao Pereio, devo esse filme ao Abrahão [Farc], devo esse filme ao Ezequias [Marques], pelo improviso que eles me deram, mas esse improviso não foi, assim, aconteceu! Esse improviso vinha de uma convivência que a gente teve junto, essa liberdade de que a genta tava falando, de dias, entendeu? A gente não era diferente filmando ou não filmando. Nosso universo, pelo menos naqueles dias, aqueles personagens todos, a gente estava vivendo, praticamente aquilo, no dia a dia em Belo Horizonte."6
Reescrita, direção e atuação
“E o Bang Bang, toda noite, isso eu me lembro bem, o que estava escrito, o que devia ser filmado, sei lá, digamos: Pereio e Jura Otero no bar vão conversar. Tinha uma seqüência escrita, diálogos e tal. Mas aí, na noite anterior, aquilo ali não era satisfatório. A cena era reescrita, totalmente reescrita de noite como base pra no dia seguinte poder chegar para o Pereio, para a Jura ou para as pessoas e simplesmente poder dar para elas, botá-las em uma situação e dar para elas, vamos dizer assim, indicações dos sentimentos que eu gostaria que aquilo expressasse – só."7
Personagens esvaziados
Esses personagens foram intencionalmente esvaziados ao máximo de qualquer coisa, que pudesse ter um significado muito óbvio para permitir exatamente projeções. [...] Por que o macaco? O macaco é exatamente a história do [filme] O planeta dos macacos. Não tinha essa lógica, essa associação [na época], mas ele é um animal, uma besta, e o homem também carrega essa besta, entendeu? Esse poder também está no personagem, e, no fundo, todos eles são a mesma história. [...] Só que cada um expressa uma parte dessa história, narra simbolicamente uma situação, de maneira que não seja possível manter uma lógica: você é obrigado a projetar o sentido para que aquela história continue. Então, o vazio do personagem é, na verdade, tudo aquilo que você não põe e que não consegue projetar nele. Se diante de um símbolo você fica neutro, está faltando alguma coisa que não está na ausência de sentido do símbolo, mas na ausência da capacidade de se projetar esse novo símbolo. [Tonacci hesita e dá de ombros.] Também não vou mais longe do que isso…8
“Foda-se quem é o autor!”
Com Bang bang, bem ou mal, eu tinha 25, 26 anos. O filme vai, por exemplo, para a Quinzena dos Realizadores [do Festival de Cannes]. Numa dessas, você aparece como um par, não é um garoto. E não é tratado assim, porque ali se fala de cinema, se fala de filmes... Foda-se quem é o autor! O autor é a porra que a mídia precisa para fazer o oba-oba do festival… Mas é um encontro de intenções, de desejos, de realidades.9
TONACCI, Andrea. Andrea Tonacci (depoimento, 2016). São Paulo, SP [FGV] — p. 26.
DEVIRES – cinema e humanidades / UFMG. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.9 n.2 (2012) [Dossiê Tonacci] — p. 134.
TONACCI, Andrea. Andrea Tonacci (depoimento, 2016). São Paulo, SP [FGV] — p. 26-27.
TONACCI, Andrea. Andrea Tonacci (depoimento, 2016). São Paulo, SP [FGV] — p. 27.
DEVIRES – cinema e humanidades / UFMG. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.9 n.2 (2012) [Dossiê Tonacci] — p. 134-135.
TONACCI, Andrea, Extras: comentários do diretor. Lume produções Cinematográficas, Heco Produções. São Paulo, 2009.
Entrevista com Andrea Tonacci (Contracampo; entrevista realizada em 2005).
TONACCI, Andrea, Extras: comentários do diretor. Lume produções Cinematográficas, Heco Produções. São Paulo, 2009.
DEVIRES – cinema e humanidades / UFMG. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.9 n.2 (2012) [Dossiê Tonacci] — p. 132.