por Paulo Emílio Sales Gomes
Alguém uma vez deplorava não ser facultado aos cineastas realizar duas vezes seguidas a mesma fita, a primeira versão servindo apenas de rascunho para a obra definitiva. Apesar do estabelecimento dessa norma ser industrialmente impensável, desde os tempos heroicos do cinema foram utilizados métodos que dela derivam. Algumas dezenas de filmes pequenos e médios de D. W. Griffith aparecem aos olhos do historiador como esboços preparatórios do Nascimento de uma nação e Intolerância. A frustração de Merry-Go-Round e a imposição comercial a The Merry Widow foram utilizadas por Erich von Stroheim como notas e rascunhos de uma de suas obras-primas, The Wedding March. As grandes obras de Chaplin estão explicitamente delineadas em seus exercícios menores.
Filmes com esse caráter de exercício e rascunho concedem-nos ainda algumas razões de esperar por um cinema brasileiro. No que concerne à produção nacional mais ou menos estabilizada, tudo indica não haver remédio para a vulgaridade crônica. Há alguns anos acreditei que um amparo indiscriminado à indústria provocaria automaticamente a elevação do nível da produção, mas hoje tenho sobre isso dúvidas profundas. Ainda não existe entre nós uma verdadeira política estatal de proteção, porém causam perplexidade os resultados dos tímidos ensaios protecionistas expressos pela legislação municipal e por algumas facilidades de crédito abertas pelo poder público estadual. A reação dos produtores estabilizados, cuja atividade se desenvolve notadamente no Distrito Federal, não poderia ser mais negativa. Apoiando-se nas vantagens oferecidas, não tiveram outra preocupação que a de aumentar a quantidade dos produtos habituais. A situação tem um lado escandaloso, pois foi alertando os poderes públicos para o nível desmoralizante dos referidos produtos que as Comissões de Cinema conseguiram as medidas preliminares de proteção. Tudo nos convida a abandonar o pressuposto otimista da melhoria automática e a não mais separarmos a ideia de amparo da noção de qualidade.
Ultimamente, no que se refere ao tipo de fita mais habitual no cinema brasileiro, a única que merece consideração é Absolutamente certo, precisamente porque não foi realizada por nenhum dos lamentáveis especialistas do gênero, e sim por Anselmo Duarte, ator que, modestamente, deu aos diretores lições de fluência e narração. São exercícios como esse, como os de César Mêmolo Jr., Carlos Alberto de Sousa Barros, Nelson Pereira dos Santos, Walter Hugo Khouri e alguns ensaios rurais, que devem ter a continuidade assegurada por uma legislação de amparo inteligente.
Ninguém escondeu a decepção profunda causada por Rio, Zona Norte. A primeira fita de seu realizador — Rio, 40 graus — havia provocado justificadas esperanças. É possível, porém, que o relativo sucesso do primeiro filme tenha adormecido a vigilância do autor ao tipo de expressão cinematográfica que procura utilizar. A concepção de Rio, 40 graus exigiu uma variedade de situações e uma vivacidade no tratamento que certamente contribuíram para escamotear, até certo ponto, as deficiências que lá se encontravam, porém sem tempo de se manifestarem plenamente. A ação de Rio, Zona Norte, condensada em torno de uma linha central, e a decorrente exigência de continuidade dramática permitiram que os defeitos se afirmassem ao ponto de arruinar o filme. Pondo de lado as clamorosas insuficiências técnicas do som e da fotografia, a fraqueza mais evidente da fita redunda da confiança excessiva de Nelson Pereira dos Santos na virtualidade artística dos materiais a serem cinematografados. Adepto de uma escola cinematográfica que procurou fugir do artístico facilitado pelo uso do estúdio e inspirar-se nos ambientes, personagens e situações de uma realidade mais imediata, Nelson Pereira dos Santos foi talvez vítima da ilusão de que esse estilo o dispensasse da necessidade laboriosa de estilização e da procura cuidadosa das convenções mais adequadas aos seus propósitos. Ele simplesmente dispôs numa certa ordem os materiais, quase em estado bruto, de uma realidade pouco trabalhada, na esperança de que a poesia e a beleza nela contidas se comunicassem espontaneamente ao espectador pelo milagre da fotogenia e da sonogenia. Na realidade, as exigências do chamado neorrealismo são mais imperiosas do que as de outras escolas cinematográficas. Quando o ponto de partida não é a fidelidade meticulosa ao real, os recursos ditados pela convenção ou pela estilização, mesmo quando aparentes, não chocam, a menos que perturbem a realidade puramente artística do que se está criando. Ninguém pensará em acusar de artificialismo Sternberg ou Cocteau e muito menos o Dr. Caligari e sua descendência. A maior dificuldade do cineasta, cujo propósito é dar a impressão de realidade objetiva absoluta, é, por um lado, a necessidade de utilizar todos os artifícios inerentes à criação artística e, por outro, ser obrigado a manter rigorosamente invisíveis os recursos de que lança mão, a fim de conseguir essa ilusão de transparência, de completa adesão à realidade, que é a característica do gênero. Esse esforço de recriação foi mínimo em Rio, Zona Norte; porém, tendo chegado a ser exercido, o filme perdeu igualmente no terreno extra-artístico, o do registro automático de aspectos da vida carioca, que poderia eventualmente solicitar o nosso interesse. Apesar de tudo isso, é um exercício válido. Essa fita fracassada contém momentos que, bem estudados, poderão provocar uma tomada de consciência sobre as sutis e misteriosas exigências do cinema e contribuir para o desenvolvimento da tendência neorrealista brasileira. Penso sobretudo na sequência em que o personagem interpretado por Grande Otelo acorda, levanta-se, faz a toalete e recebe a noiva. Gostaria de saber se esses minutos de fita foram obtidos por acaso ou se o diretor agiu conscientemente. De qualquer maneira, os movimentos do ator, as palavras que troca com a noiva, o comportamento com a criança e sobretudo a extraordinária presença tátil dos objetos de uso corrente ou da ornamentação humilde do barracão criam uma harmonia interior e comunicam uma doçura que conferem a essa sequência modesta uma consistência artística e humana rara no cinema brasileiro.
Walter Hugo Khouri situa-se, artisticamente, nos antípodas de Nelson Pereira dos Santos. O ponto de apoio para este é um objetivo a ser expresso, e para aquele é o próprio meio de expressão. Para fazer sua fita, Nelson partiu do Rio de Janeiro e de suas favelas. Para colocar alguns personagens em situação dramática nos arredores de São Paulo, Khouri partiu do próprio cinema. A ideologia que informa o autor de Rio, Zona Norte tem raízes num humanismo difuso para o qual o cinema é uma entre muitas outras válvulas de escape. A formação do diretor de Estranho encontro é essencialmente cinematográfica. Nisso reside ao mesmo tempo a sua força e sua fraqueza. O rascunho populista de Nelson Pereira dos Santos empalidece ao lado do exercício brilhante de Walter Hugo Khouri, mas se em Rio, Zona Norte e mesmo em Rio, 40 graus temos um autor que se revela inábil na manipulação do tipo de expressão estética que escolheu, Estranho encontro nos dá às vezes a impressão curiosa de um estilo à procura de um autor e de uma história.
A presença desse estilo desgarrado é tão forte que leva o espectador por caminhos e sensações alheios às intenções do realizador. Segundo suas expressas declarações, toda a primeira parte, o encontro de Marcos com a moça na estrada, a instalação de ambos na casa de campo de Vanda até a chegada da proprietária, deveria constituir um acontecimento lírico. Na realidade, o tom que domina é o do mistério, particularmente nas admiráveis sequências de flashback que se iniciam na relojoaria e nas quais visualiza-se a narração da heroína. A longa introdução enigmática foi tão poderosa que, enquanto pode, o espectador conserva-se fiel ao seu espírito, até que se desvanece a hipótese, um momento aventada, da loucura da moça. A partir daí, o realizador domina essa espécie de rebelião do estilo contra a sua vontade, porém o espectador se sente um pouco perplexo. Há uma evidente ruptura de tom, o mistério desapareceu, tudo é claro, mas como a fita ainda dura bastante tempo o espectador procura adaptar-se à nova situação, interessando-se mais detidamente pela psicologia dos personagens, pela situação e pelo rumo dos acontecimentos. Vanda chegou, mas suas relações com Marcos já haviam ficado esclarecidas há mais tempo. Ele é uma espécie de gigolô sem muita vocação, para quem o encontro com a heroína significa uma perspectiva de amor mais autêntico e novo rumo de vida. A moça está escondida num barracão próximo e o criado já denunciou o seu refúgio ao homem que a persegue e que logo chegará. Durante certo tempo, a situação estabiliza-se nesses termos. Enquanto isso, o estilo, novamente autônomo, faz das suas. A tempestade, o gato, o medo da heroína, tudo é bom, e é soberba a imagem final das últimas gotas que tombam da teia de aranha destruída e encharcada pela chuva. Porém, quando Marcos repete para a moça que precisam encontrar uma saída para a situação, a impaciência do espectador revela a não identificação dramática com o personagem. Por que Marcos não parte imediatamente com a moça? A razão sugerida é a falta de meios, pois na véspera saiu à procura de dinheiro sem resultado. Quando explica a Vanda o ar preocupado e ausente, atribuindo-o a sua posição difícil frente aos credores, desponta uma nova motivação para um comportamento até então inexplicável: ele tentará obter dinheiro da amante para partir com a heroína. Apesar de imoral, essa intenção daria coerência dramática à situação e seria recebida com simpatia pelo espectador. Mas quando a resposta de Marcos ao oferecimento de Vanda é “Não posso aceitar isso”, e não aceita mesmo, desaparece a última possibilidade de estrutura temática e não se pode mais fugir à impressão de que há um tecido de pretextos cuja função é ganhar tempo até a chegada do perseguidor. Quando este finalmente aparece, o principal susto que provoca — o excelente reflexo da fisionomia no vidro do carro — é de natureza puramente estilística. Com efeito, nada de grave poderia acontecer à heroína, pois Marcos encontra-se a dois passos, dentro da casa. Aliás, o outro grande susto de Estranho encontro também está em flagrante desproporção com a situação e seu valor é exclusivamente virtuosístico. Trata-se do poderoso momento em que a moça entra no quarto do homem com quem coabitava e subitamente estaca. A câmera percorre lentamente de cima para baixo uma perna ortopédica e no plano seguinte há uma aproximação rápida da parte posterior do aparelho. A impressão profunda que esse tratamento cinematográfico causa seria plenamente justificável se até aquele momento a moça não soubesse que o companheiro não tinha uma perna.
Os brilhantes exercícios de estilo de Walter Hugo Khouri o situam imediatamente entre os poucos bons realizadores que possuímos e como uma grande esperança para o cinema brasileiro. A experiência de Estranho encontro faz-nos, entretanto, perguntar se como argumentista, roteirista e dialoguista ele está em terreno que lhe é adequado. A análise feita neste artigo contém um julgamento implícito sobre o argumento e o roteiro. Quanto aos diálogos, o tom nos é dado pelas primeiras palavras de Marcos, quando na estrada se dirige à moça: “Vamos, acorda, está melhor?”. Através da fita continua: “Vamos parar com esse jogo de adivinhação” ou “Vamos, continue”. Mesmo que o realizador não tivesse sido traído pelo estilo, sua intenção de fazer do encontro entre os dois jovens um episódio lírico ficaria irremediavelmente comprometida pela mediocridade dos diálogos.
Faço uma crítica sem complacência de uma película a que assisti três vezes, frequentemente com muita admiração, porque acredito que de rascunhos e exercícios realizados à margem da produção corrente sairá o cinema brasileiro no qual confiamos.