por Paulo Emílio Sales Gomes
O texto que se segue, vale lembrar, consta no acervo oficial da Hemeroteca Digital (disponível aqui para livre acesso). Compartilho uma transcrição atualizada conforme o atual padrão ortográfico para maior conforto na leitura e melhor acessibilidade geral a mais um importante texto do grande Paulo Emílio Sales Gomes.
Uma excelente leitura a todos!
Um condenado à morte escapou será provavelmente a maior surpresa da Semana do Cinema Francês. Os filmes de Renoir, Becker, Autant-Lara, Clouzot, Molinaro e Malle terão certamente grande sucesso, mas nenhuma dessas obras médias, boas ou excelentes dará ao público o sentimento inesperado que lhe reserva Robert Bresson sobre quem nossos espectadores estão mais desprevenidos do que os de outros países. Na Europa e nos Estados Unidos, a crítica e o público, ao se defrontarem com Um condenado à morte escapou, já conheciam Journal d’un curé de campagne [Diário de um padre, 1951], ao passo que no Brasil esta fita não encontrou exibidor. O primeiro contato entre nosso público e Bresson vai ser brusco e desconcertante. Se ele é desconhecido em nosso país, não é somente porque suas obras nunca tenham sido exibidas aqui; as agências noticiosas e a publicidade cinematográfica internacional inundam os cotidianos com informações a respeito de fitas que nunca chegam até nós. Bresson, porém, é um homem extremamente reservado, suas entrevistas são raras e ele impõe seu pudor aos produtores. É mesmo surpreendente que os encontre. O rigor de Bresson explica sua filmografia, composta por uma lista interminável de projetos e apenas cinco filmes realizados, entre os quais uma comédia de curta-metragem. É pouco para 25 anos de atividade cinematográfica. Não é, porém, a primeira vez que um autor de poucos filmes se coloca entre os maiores nomes da história do cinema. A expressão “cineasta” adquiriu em nossos dias um sentido limitado e um pouco ridículo que em todo caso define mal a posição de Bresson na vida francesa. Ele é, na realidade, uma das expressões de arte e pensamento mais exigentes da França contemporânea, com a particularidade de se manifestar exclusivamente através do filme.
Sei muito pouco sobre esse homem de 52 anos de idade que foi pintor e assistente de René Clair. Julien Green, que colaborou com ele num dos seus projetos não realizados, um filme sobre Inácio de Loyola, faz no quinto volume do seu Journal algumas anotações sumárias, mas que lançam certa luz sobre as criações do autor de Um condenado à morte escapou. Bresson aparece como inimigo dos efeitos pitorescos, a começar pelos milagres. Por outro lado, acha que as diversas biografias devem ser postas de lado depois de conhecidas. O que ele pede a Julien Green é a reconstrução interior de Santo Inácio.
Reserva, pudor, exigência, inferioridade, essas expressões se apresentam espontaneamente quando se cuida da obra de Robert Bresson, mas não se aplicam bem a Giraudoux, Cocteau ou mesmo Bernanos, nomes indissoluvelmente ligados a Les Anges du péché [Anjos do Pecado, 1943], Les Dames du Bois de Boulogne [As Damas do Bois de Boulogne, 1945] e Journal d’un curé de campagne. Nada mais literário, inclusive no ingênuo sentido pejorativo, do que os diálogos de Giraudoux e Cocteau para aquelas duas fitas. Utilizados, porém, por Bresson, seu papel é acusar a desencarnação do drama, aniquilar a importância do episódico, a fim de permitir o afloramento dos movimentos mais profundos do espírito. Conduzidos por Bresson, os grandes atores profissionais de Les Anges e de Les Dames dizem textos de escritores brilhantes num ritmo puramente interior. A réplica de Jacques em Les Dames: “II n’y a pas d’amour, Hélène, il n’y a que des preuves d’amour” [Não existe amor, Hélène, só existem provas de amor] — que um crime recente tornou célebre na França — tem aspecto de jogo estimulante e gratuito, característico de Cocteau, somente no libreto da fita. No contexto fílmico bressoniano é apenas um entre os muitos indícios intimamente entrosados que insinuam a presença do orgulho feminino ferido. Este é o tema central das duas primeiras grandes fitas de Bresson. Les Anges du péché desenvolve-se em torno de um alto combate espiritual e Les Dames du Bois de Boulogne é a história de uma pérfida vingança, mas a freira, a assassina e a senhora de sociedade dessas fitas são mulheres cujo traço essencial de caráter é o orgulho. Não ficaria surpreendido se viéssemos a concluir que Journal d’un curé de campagne e Um condenado à morte escapou são exaltações do orgulho masculino.
Bresson não adaptou ao cinema obras de Giraudoux ou Cocteau, esses foram apenas seus colaboradores literários. Foi outra a natureza da articulação com Bernanos. O romancista já morrera ao ser realizado o filme baseado no seu livro. Journal d’un curé de campagne foi justamente considerado como um caso singular de fidelidade cinematográfica a um texto literário. Bresson respeitou inclusive a forma de diário. Todas as situações do filme são escrupulosamente calcadas no romance e o mesmo acontece com os diálogos. O filme é Bernanos puro e ao mesmo tempo puro Bresson. Como foi isso possível, se existe um abismo entre o estilo de um e o de outro, o primeiro cheio de expansão e exuberância, o segundo dominado pela contenção e o rigor? A explicação está no fato de que se tudo o que há no filme existe no romance, a recíproca não é verdadeira; Bresson não simplificou nem deformou o que escolheu, mas no ato da escolha afirmou-se. Journal d’un curé de campagne é a história de um padre jovem, inábil, inexperiente, perplexo, doente, que encontra energia para levar avante a sua missão. No filme como no romance, a força do personagem está na sua paixão cristã, na Graça que o anima, mas podemos perguntar se esta noção tem o mesmo sentido para Bernanos e para Bresson. Um personagem do romance, o dr. Delbende, afirma que ele e o jovem padre pertencem à mesma raça e a este último que lhe pergunta surpreso qual é essa raça, o médico ateu responde: “Celle qui tient debout. Et pourquoi tient-elle debout? Personne ne le sait, au juste. Vous allez me dire: la grace de Dieu? Seulement, moi, mon ami, je ne crois pas en Dieu. Attendez! Pas la peine de me réciter votre petite leçon, je la connais par coeur. ‘L’esprit souffle où il veut, j’appartiens à l’âme de L’Eglise’ — des blagues” [Aquela que permanece de pé. E por que ela está de pé? Ninguém sabe exatamente. O senhor vai me dizer: a graça de Deus? Só que eu, meu amigo, eu não acredito em Deus. Espere! Não adianta me recitar sua liçãozinha, eu a conheço de cor. ‘O vento sopra onde quer, eu pertenço à alma da Igreja’ — piadas]. Depois de outras considerações, o dr. Delbende conclui: “Je me demande si nous ne sommes pas simplement des orgueilleux” [Eu me pergunto se nós não somos simplesmente orgulhosos].
Não há dúvida de que para Bresson o padre do Journal e Fontaine, o personagem de Um condenado à morte escapou, são magnificamente orgulhosos, cada um à sua maneira, e pertencem ambos à raça dos que ficam de pé. E é curioso lembrar que o primeiro título de Um condenado foi precisamente a citação evangélica “L’esprit souffle où il veut.”
Mas Um condenado à morte escapou nada tem a ver com Bernanos. Desta vez, aliás, não aparece nome de grande escritor nos letreiros da fita. Ela se baseia num texto publicado em um hebdomadário e no qual um antigo resistente, o comandante André Devigny, narra a sua fuga do forte de Montluc, onde se encontrava condenado à morte pela Gestapo. Ainda aqui é através da mais estrita fidelidade que Bresson atinge a liberdade criadora dentro do seu estilo pessoal. Na história do padre, os problemas que enfrentava nos interessavam cada vez mais em função de sua vida interior. Em Um condenado, os meticulosos preparativos para a fuga nos interessam a ponto de prendermos a respiração, mas o que fascina é o personagem, é a prodigiosa força interior, a qual não é propriamente expressa. Os atos e as palavras são apenas sinais incompletos de uma obstinada e misteriosa tensão.
Torna-se evidente o motivo que obrigou Bresson a abandonar o emprego de atores profissionais. A busca da interioridade exclui a representação e exige fisionomias inéditas. É sabido que Bresson frequenta longamente seus intérpretes antes de iniciar as filmagens. Poder-se-ia pensar que durante esse tempo procura impregnar o personagem no ator. Na realidade, ele nada explica ao interessado, mas procura impregnar-se dele. Numa das raras declarações públicas sobre sua arte, Bresson explicou que para ele a palavra prise, prise de vue [tomada] é exatamente sinônimo de captura. Trata-se de surpreender o ator, de captar na fisionomia de uma criatura viva o que há de mais pessoal, raro e secreto, a centelha que fornecerá elementos para o realizador desenvolver o problema da sua criação. Esse método exige muita filmagem. Os 3 mil metros de Um condenado à morte escapou foram escolhidos entre 80 mil filmados. A montagem é um momento igualmente crucial no trabalho do realizador. O critério que preside a operação não é só o da técnica narrativa. Em última análise, o sentido profundo da obra é dado pela sucessão de centelhas captadas durante as filmagens. É o que nos dá nos filmes de Bresson o sentimento extraordinário de que os acontecimentos lógicos e exteriores estão totalmente subordinados à obscura intensidade da vida interior dos personagens.
O cinema sempre conheceu momentos de interioridade não expressa, mas eram apenas momentos, tratava-se de uma interioridade no espaço. Robert Bresson a projeta no tempo. Só ele poderia filmar o orgulho secreto dos que não capitulam.