por Paulo Emílio Sales Gomes
Há vinte e poucos anos, quando cheguei a Paris pela primeira vez, meu interesse principal era a política. Decorria daí uma curiosidade muito grande pela figura dos homens públicos. Como os grandes do dia não eram acessíveis a um estudante sem relações, restava-me o consolo de encontrar chefes depostos. Procurei ver Alexander Kerensky em seu pequeno apartamento na Villa-de-la-Réunion e aproveitei a primeira oportunidade para visitar Washington Luís no Hotel Vernet. Comunista que eu era, minha interpretação dos acontecimentos da vida política brasileira processava-se através das brochuras editadas em espanhol pela III Internacional em Moscou. De acordo com esses documentos, alguns assinados por Ercole, que mais tarde soube ser pseudônimo de Palmiro Togliatti, as revoluções brasileiras eram fundamentalmente consequências e expressões das rivalidades imperialistas entre a Inglaterra e os Estados Unidos. A de 1930, por exemplo, teria sido fomentada por este último país, e a vitória do movimento chefiado por Getúlio Vargas seria na realidade um êxito para o imperialismo norte-americano. Já naquele tempo esses esquemas pareciam-me por demais sumários, mecânicos, e, encorajado pela ingenuidade, resolvi aproveitar o encontro com Washington Luís para testá-los. Como não podia, decentemente, perguntar ao venerando estadista se ele era um agente inglês, procurei saber dele se havia tomado conhecimento do interesse eventual de círculos norte-americanos pela vitória da Revolução de 1930. O rosto do presidente deposto, cuja vermelhidão natural era acentuada pela barbicha branca, abriu-se num largo sorriso de compreensão, e ele respondeu num tom de didatismo paternal: “Qual o quê, meu filho! Eu nunca ouvi falar nisso, mas se esses rumores existiram, eram certamente difundidos pelo próprio dr. Getúlio para dar a impressão de que era muito apoiado”. Essa resposta inesperada deixou-me perplexo e desconcertou meu plano de inquérito. Diferentemente de hoje, em que o nome do velho presidente evoca automaticamente para as imaginações a ideia de honradez, naquele tempo era quase sinônimo de pouca inteligência; optei por essa explicação fácil quando, graças a outros encontros, tornou-se evidente que para o exilado do Hotel Vernet o problema imperialista simplesmente não existia, estando ele sinceramente convencido de ter sido presidente de uma nação plenamente soberana. Experiências renovadas, pessoais ou literárias, com homens públicos brasileiros ou estrangeiros, exilados ou não, levaram-me a abandonar as explicações psicológicas simplistas em termos de inteligência ou burrice. Surpreendi-me em constatar até que ponto a situação particular de um homem público num país subdesenvolvido favorece o florescimento da ficção. Estadistas, ministros e parlamentares da esfera conservadora enredam-se progressivamente numa concepção do mundo afetivamente compensadora, intelectualmente coerente, mas efetivamente absurda em razão do destaque cada vez mais pronunciado da realidade. A dramática lucidez de chefes de países subdesenvolvidos, como a evocada em A engrenagem, de Sartre, é fenômeno recente e participa da corrente de desmistificação atualmente em curso com tantas consequências para os povos atrasados.
O aprofundamento da reflexão faz-nos, aliás, compreender que as forças que se opunham às conservadoras não escapavam por sua vez ao desvio ficcionista. Ainda a respeito do imperialismo, se por um lado se chegava ao ponto de ignorar sua existência, por outro a imagem da penetração dos interesses estrangeiros proposta pelo setor revolucionário era com excessiva frequência a expressão de uma fantasia bastante arbitrária. As brochuras da III Internacional foram instrumentos irrisórios para a compreensão da realidade brasileira. As formulações da ideologia anti-imperialista que alimentou minha juventude constituíam um romance. Mais do que isso, a polêmica ideológica nos países subdesenvolvidos foi durante décadas uma batalha de Itararé, isto é, um acumpliciamento na irrealidade das forças em presença.
Hoje, só o cinema me preocupa, ou melhor, tudo me interessa, mas em função do cinema. A fase de empenho pelos problemas globais da sociedade serviu, contudo, de preparo útil à meditação cinematográfica específica. Esse campo delimitado de pensamento e ação oferece ao observador numerosos traços que decorrem da conjuntura delineada nesta crônica à guisa de introdução. A cinematografia brasileira, como a política geral dos países subdesenvolvidos, tem sido um mundo de ficções. Durante anos a fio ninguém teve ideia de como as coisas se passavam; os dados nos quais se assentava a produção e o comércio dos filmes brasileiros eram bem mais fantasiosos do que o enredo das fitas.
O número de pessoas que se interessa pelo assunto cinematográfico brasileiro foi sempre muito reduzido. Para entendermos esse fenômeno, é preciso lembrar que até há bem pouco tempo reinou entre nós, muito generalizada, uma mentalidade essencialmente importadora. No primeiro volume de suas memórias, Gilberto Amado — que adolescente foi empregado no Recife de uma firma de importações — fornece-nos a lista surpreendente de objetos corriqueiros de consumo que o Brasil fazia vir de fora antes da Primeira Guerra Mundial. Ainda durante a década de 1920, em mesas paulistanas, não apenas nas mansões das famílias patrícias mas também nas casas de trato simples, a manteiga servida era a vermelha da Dinamarca e os palitos, Marquesinhos se não me engano, provinham de Portugal. Imaginar naquele tempo o Brasil fabricando automóvel, por exemplo, seria uma insensatez. “Petróleo” era termo técnico de pouco uso e gasolina pertencia ao rol das coisas que só o estrangeiro produz. O fato de importarmos palitos explica como era importante nutrirmos a ideia de que um brasileiro inventara o aeroplano em Paris. Essas alusões a um passado que me parece recente, pois dele me lembro com nitidez, ajudam-nos a perceber o que se passa atualmente com o filme. Como antigamente o palito, a manteiga, o automóvel ou a gasolina, o filme é ainda hoje considerado como algo que por definição deve ser estrangeiro. O fato de não termos cinema, ou de praticamente só realizarmos maus filmes, seria, de acordo com uma opinião tão arraigada que não sentia necessidade de explicitar-se, com frequência, parte da realidade brasileira básica. “O Brasil não produz filmes como não produz cerejas”, disse alguém simplificando esse ponto de vista.
Esse resquício tenaz da mentalidade importadora criou um clima extremamente desfavorável ao empreendimento cinematográfico brasileiro. Como quase ninguém se ocupava do assunto, os problemas relativos à indústria e ao comércio do cinema foram até há bem pouco tempo temas virgens entre nós. Os pioneiros que em diferentes épocas se lançaram à aventura não encontravam elementos de informação válidos e acessíveis que os orientassem. Acontece que a ação exige plano, e este implica visão global de uma conjuntura. Sem o amparo de informações ordenadas e de um sistema de ideias constituído objetivamente e testado pela experiência contínua, nossos produtores criavam para uso próprio, de acordo com suas inclinações e preferências, concepções baseadas em dados esparsos, incertos ou obscuros, e por isso fatalmente disparatadas. O aglomerado de ideias acabava adquirindo certa consistência interna, mas não devido a uma melhor adequação aos fatos, e sim porque a busca da coerência, mesmo na fantasia, faz parte da natureza do espírito humano. A lógica que articulava as ideias de nossos produtores era a da ficção. Quando, depois de muitas lutas, às vezes heroicas, chegava a hora da capitulação, o produtor acusava de ingratidão a realidade sociológica, quando não racionalizava o acontecido em termos menores de psicologia. Na verdade, ele jamais se medira com a realidade, sempre a ignorara e nela não se inseria. Diante de uma realidade incompreensível, o produtor refugiava-se num sistema compensatório de ficções, causa do seu malogro.
Durante os primeiros trinta anos do século, os produtores brasileiros agiam bastante isoladamente. A partir de 1930, adquiriram um mínimo de espírito associativo e ensaiaram em conjunto algumas reivindicações junto aos poderes públicos. Expressões de um setor extremamente modesto na hierarquia social e economia da nação nunca encontraram muita audiência. Esses homens da classe média — numa época em que essa fração da sociedade brasileira ainda era extremamente débil — representavam apenas a si próprios e os seus pequenos interesses profissionais, não tinham atrás de si amparos financeiros sólidos, não podiam arguir a respeito do interesse do público pelas suas produções, não tinham sequer autoridade para avançar argumentos de ordem cultural, e sobretudo não estavam capacitados para estimular a imaginação modorrenta dos governantes com largas perspectivas industriais e econômicas. Os primeiros entendimentos entre os produtores cinematográficos e os poderes públicos assumiram a forma de uma troca de favores, da qual é exemplo típico a lei da obrigatoriedade do complemento nacional. Os fabricantes adquiriram certa garantia para o escoamento de seus jornais cinematográficos mais ou menos publicitários e as autoridades públicas obtinham destaque para suas monótonas inaugurações e visitas. Satisfazendo pequenos interesses e não perturbando os grandes, isto é, não alterando o statu quo do mercado, a obrigatoriedade do complemento nacional estabilizou-se. É apenas nesse exemplo de nível tão inferior que observamos um resultado concreto e de efeito contínuo produzido pelos numerosos encontros da classe cinematográfica com os sucessíveis governos de Getúlio Vargas. Os ensaios de legislação em favor da fita brasileira de longa-metragem exigiam, para serem delineados de maneira efetiva, uma soma de conhecimentos que os interessados brasileiros não possuíam, a respeito da natureza e do funcionamento da indústria e do comércio cinematográficos em escala universal. Esse esforço de lucidez, por outro lado, não poderia vir de nossas autoridades públicas, contaminadas, em matéria de filme, pela mentalidade importadora. Os dirigentes governamentais alimentavam a imaginação ingênua ou o cálculo matreiro mas inoperante dos produtores deixando-se consagrar à distância, em publicações ou filmes, como amigos número um do cinema brasileiro. Getúlio Vargas, presidente ou ditador, governadores ou interventores dos estados mais prósperos prestaram-se metodicamente a esse ritual de ilusão.
Há pouco mais de dez anos manifestou-se um fenômeno que ficará como um marco na história do empreendimento cinematográfico brasileiro: personalidades da alta hierarquia social paulista lançaram-se à aventura cinematográfica. Como seus predecessores pequenos, esses grandes burgueses foram igualmente orientados por ficções e malograram. Este acontecimento de vulto criou, contudo, condições para o florescimento de algo totalmente novo na consciência cinematográfica brasileira: o gosto da realidade.