por Paulo Emílio Sales Gomes
Para cuidar adequadamente de cinema brasileiro, é necessário imaginação, isto é, capacidade de condicionar os estudos teóricos e as providências práticas a uma situação ainda inexistente, pelo menos na aparência. Trabalhar tendo como objetivo apenas a melhoria ou o aperfeiçoamento do estado cinematográfico em que nos encontramos é um gasto ilusório e irrisório de energias. A modalidade e o grau de estratificação que a conjuntura cinematográfica brasileira atingiu tornam ineficazes os ensaios tímidos de reformismo. O que a situação presente sugere e comporta é uma revolução.
Apesar de muito usada nos comícios eleitorais e nos editoriais políticos — é verdade que sempre envolvida por um tecido de ressalvas atenuadoras — a palavra “revolução” ainda provoca temor, mesmo quando aplicada a um terreno delimitado e inocente como o da cinematografia. Inúmeros espíritos não veem com clareza o que seja uma revolução. Esta lhes sugere a ideia de algo muito planejado, deliberado, forçado, cujo intuito é o de substituir uma coisa por outra, porém dentro de um mecanismo no qual a liberdade de escolha fosse muito grande, isto é, num contexto onde a revolução pudesse, indiferentemente, ser ou não praticada. A revolução seria a consequência da opção de consciências organizadas, e implantada pela violência da vontade. Esta concepção romântica dificulta a compreensão de como se processam os acontecimentos não só na vida social como um bloco mas igualmente em setores delimitados e modestos da atividade humana, como o cinematográfico.
A revolução é muito menos vanguardística do que à primeira vista parece. Quando se torna possível, é porque já se encontra pronta dentro do corpo social, ao cabo da longa e complexa gestação. A sua eclosão tem a harmoniosa inelutabilidade do nascimento. A violência que implica é incomparavelmente menor e mais útil do que a necessária para impedi-la. As forças que a revolução enfrenta, mesmo quando possuem, graças ao fenômeno da inércia, aparências de estabilidade estão por definição e na realidade em declínio e condenadas. O ato revolucionário decisivo é tão simples como um soco num paralítico, escrevia Leon Trótski, e eventualmente tão pouco agradável, acrescentamos nós.
A imaginação revolucionária consiste em vislumbrar no presente as formas de um futuro que já se encontra configurado e vivo, e agir em consequência, enquanto os reacionários e conservadores perdem literalmente o seu tempo procurando restaurar ou conservar aparências. A complexidade da história admite, porém, que um nascimento revolucionário seja truncado, mas o organismo social não se presta ao aborto. Quando a violência inútil impede que a revolução frutifique, surgem situações que evocam a do monstro Eumergue, personagem mitológico inédito, que passou muitas décadas no ventre materno, feto adulto, cabeludo, dotado de enormes unhas, de consciência, e que conheceu a luz do dia para morrer.
Essa variação sociológica e literária é útil para a descrição da perspectiva que se abre para o cinema brasileiro. Nesse domínio, mentalidade reacionária, conservadora ou reformista são quase sinônimos. Trata-se de pessoas que aceitam como cinema brasileiro o statu quo vigente. Fazem-no por desinteresse, inadvertência, distração ou pessimismo. Em regra geral, situam-se fora dos meios cinematográficos, embora na própria corporação existam representantes dessa mentalidade, velhos profissionais combalidos por anos de atividade medíocre, ou intelectuais roídos pelo ceticismo. Essa gente dificilmente consegue enxergar além das duas dúzias de maus filmes que o Brasil produz anualmente. É uma perda de tempo examinar quais os motivos técnicos, artísticos e intelectuais que conferem à nossa produção um nível tão inferior, como igualmente não adianta imaginar providências que assegurem maior estabilidade aos produtores atualmente empenhados no ramo. Seria admitir como normal uma situação que se tornou impossível, pois decorre de um mundo morto e enterrado, o de um Brasil que aceitava o subdesenvolvimento e que na ilusão de atenuá-lo apelava para o recurso definidor do estatuto colonial, a importação de objetos manufaturados. Fazer filmes é mais difícil do que fabricar sabonete ou sapato, sendo por isso compreensível que a importação maciça do divertimento manufaturado tenha permanecido como um dos mais tenazes resquícios do lamentável passado brasileiro. Por outro lado, porém, é incomparavelmente mais fácil implantar uma indústria cinematográfica do que a siderúrgica, a petrolífera ou a automobilística. É sobretudo depois de termos realizado a proeza de criá-la no país que a conjuntura cinematográfica brasileira aparece cada vez mais como incompreensível, inadmissível e escandalosa. O recurso é apelarmos para a imaginação revolucionária. O ponto de partida para uma planificação cinematográfica brasileira seria ter em vista para um futuro bastante próximo a produção anual de cinquenta filmes, cifra que deverá alçar-se gradativamente a cem. É curioso verificar até que ponto é suficiente formular esse projeto, aparentemente tão distante da situação atual, para sentir como ele corresponde não a necessidades futuras, mas à satisfação de desejos coletivos atuais. Melhor do que isso, o normal teria sido que o processo se tivesse iniciado há mais de dez anos, a partir da constituição da Companhia Vera Cruz, e que atualmente a nossa produção já estivesse situada na casa dos cem. Está estatisticamente comprovado que desde aquele momento o público cinematográfico brasileiro demonstra, cada vez que se lhe oferece a oportunidade, a sua preferência pelo produto nacional, sendo igualmente útil recordar que durante a última década esse público foi, em todo o mundo, provavelmente o que mais se desenvolveu numericamente. Se a indústria de divertimento não fincou pé definitivamente entre nós durante os anos 1950, foi exclusivamente em virtude da cegueira demonstrada nesse particular por nossas autoridades públicas. Longe de mim a ideia de que o cinema deva ser em nosso país um empreendimento estatal. No Brasil moderno e durante um período de tempo que não avaliaremos, a indústria cinematográfica será um produto de iniciativa privada. Compete ao governo apenas tomar a série de medidas básicas indispensáveis ao desenvolvimento econômico desses empreendimentos do capitalismo particular.
Ainda aqui, o postulado da imaginação revolucionária relativo aos cem filmes anuais indica um dos caminhos a seguir, orientação, aliás, que nada tem de pioneira, pois foi a trilhada pelos italianos, franceses, ingleses, mexicanos e outras nações que acharam útil permitir a eclosão e a permanência de um cinema nacional. É preciso desafogar o mercado cinematográfico brasileiro, a fim de abrir vez para os nossos cem filmes anuais. As medidas de caráter alfandegário e cambial para atingir esse objetivo são de uma simplicidade linear. Ao grau de amadurecimento que as questões cinematográficas estão chegando entre nós, a elevação de muitos e muitos milhares por cento de tal ou qual taxa ou imposto de importação será hoje uma medida de rotina.
No mundo moderno, a revolução assume às vezes o aspecto de medidas rotineiras, como demonstrou a administração trabalhista britânica ao executar as mais profundas modificações sociais sofridas pela Inglaterra durante um século. É claro que uma revolução fere interesses, mas satisfaz outros numa proporção tão incomparavelmente superior que os primeiros podem ser negligenciados.
A revolução cinematográfica brasileira atingirá alguns interesses imediatos de industriais e comerciantes estrangeiros e de alguns brasileiros a eles associados. Graças à propaganda comunista e nacionalista, cuja miopia na matéria é tradicional, atribui-se uma força extraordinária aos representantes dos interesses cinematográficos estrangeiros no Brasil. Examinando a questão de perto, constata-se que a única fonte do poder desses delegados de fábricas americanas ou europeias é a completa indiferença manifestada até há pouco tempo pelo fato cinematográfico nos altos setores da vida política brasileira. No mais, são apenas os public relations habituais que cumprem as suas tarefas normais de criar para os produtos que vendem uma atmosfera acolhedora e simpática. Na perspectiva em que nos colocamos, os tão decantados interesses cinematográficos estrangeiros não passam de um paralítico à espera do soco.
Tudo isso indica que a revolução cinematográfica é possível. Irá ela efetivar-se? Procuraremos a resposta na plataforma cinematográfica do candidato Jânio Quadros, lançada em São Paulo em janeiro de 1960, e nas primeiras medidas relativas ao cinema tomadas pelo presidente da República durante as últimas semanas.