Por Paulo Emílio Sales Gomes
O cinema norte-americano, o japonês e, em geral, o europeu nunca foram subdesenvolvidos, ao passo que o hindu, o árabe ou o brasileiro nunca deixaram de ser. Em cinema o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela. O cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes.
É o caso da Índia, com uma produção das maiores do mundo. As nações hindus possuem culturas próprias de tal maneira enraizadas que criam uma barreira aos produtos da indústria cultural do Ocidente, pelo menos como tais: os filmes americanos e europeus atraíam moderadamente o público potencial, revelando-se incapazes de construir por si um mercado. Abriu-se assim uma oportunidade para os ensaios de produção local que durante décadas não cessou de aumentar e em função da qual teceu-se a rede comercial da exibição. Teoricamente a situação era ideal: uma nação ou um grupo de nações com cinema próprio. Tudo isso ocorria, porém, num país subdesenvolvido, colonizado, e essa atividade cultural, aparentemente tão estimulante, na realidade refletia e aprofundava um estado cruel de subdesenvolvimento.
Farei abstração aqui do papel do capital metropolitano inglês na florescência do cinema hindu, para só me deter na significação cultural do fenômeno. Pelos assuntos abordados o filme hindu permanece fiel às tradições artísticas do país e o ritmo majestoso com que são tratadas — notadamente quando os temas são mitológicos — eventualmente confirma essa impressão. A raiz mais poderosa dessa produção é, entretanto, constituída por ideias, imagens e estilo já fabricados pelos ocupantes para consumo dos ocupados. O manancial de onde derivam os filmes hindus em nosso século foi fabricado nas últimas décadas do XIX pela indústria gráfica inglesa — e respectiva literatura — através da vulgarização de uma alta tradição plástica, de espetáculo e literária. A massa de oleogravuras e textos, impregnada pelo culto da “Mother India”, raramente escapa do mais conformista e esterilizante comercialismo, herdado tal qual pelos filmes produzidos no país. Os cineastas hindus que depois da independência procuram reagir contra a tradição coagulada pela manipulação do ocupante se voltam necessariamente para temas e ritmos inspirados pelo cinema estrangeiro. O esforço de progresso apenas cultural num quadro de subdesenvolvimento geral leva os cineastas a se debaterem diante da adversidade, ao invés de realmente combatê-la.
No Japão, que não conheceu o tipo de relacionamento exterior que define o subdesenvolvimento, o fenômeno cinematográfico foi totalmente diverso. Os filmes estrangeiros conquistaram de imediato uma imensa audiência e foram de início o estímulo principal na estruturação do mercado consumidor do país. Essa produção de fora era, no entanto, por assim dizer, japonizada pelos benshis — os artistas que comentavam oralmente o desenrolar dos filmes mudos —, que logo se transformaram no principal atrativo do espetáculo cinematográfico. Na verdade, o público japonês também nunca aceitou o produto cultural estrangeiro tal qual, isto é, os filmes mudos apenas com os letreiros traduzidos. A produção nacional, ao se desenvolver, não encontrou dificuldades em predominar, principalmente depois da chegada do cinema falado, que dispensou a atuação dos benshis. Diferentemente do que ocorreu na Índia, o cinema japonês foi feito com capitais nacionais e se inspirou na tradição, popularizada mas direta, do teatro e da literatura do país.
No mundo do cinema subdesenvolvido, o fenômeno árabe — que foi inicialmente sobretudo egípcio — não possui a nitidez do hindu. Nos países norte-africanos e do Oriente Próximo a carapaça de cultura própria também não foi propícia ao alastramento do filme ocidental, mas o resultado aqui foi um desenvolvimento da exibição incomparavelmente mais lento do que na Índia. O pouco interesse pelo filme ocidental não foi acompanhado no mundo árabe pelo florescimento da produção local. A penetração imperial tendeu naturalmente a fornecer ao habitante dessas regiões uma ideia de si próprio adequada aos interesses do ocupante. Se aqui isso não levou à criação de um cinema equivalente ao hindu, deve-se provavelmente à tradição anti-icônica nas culturas derivadas do Corão. A indústria cultural do Ocidente encontrou escassa imagem original para servir de matéria-prima na produção de ersätze destinados aos próprios árabes. A fabricação de imagem árabe foi intensa mas destinada ao consumo ocidental: o modelo nunca se reconheceu. O eixo do espetáculo corânico — mesmo dançado — é o som, e o cinema árabe só se desenvolveu realmente a partir do falado. O cinema islâmico à primeira vista parece mais subdesenvolvido do que o da Índia. Está muito longe de ser presença dominante inclusive nas salas do Egito e do Líbano, os principais produtores, mas em compensação é provável que sua economia seja mais independente. Como suas matrizes não são as oleogravuras exóticas de fabricação europeia mas a técnica fotográfica do Ocidente — através da qual os árabes acabaram por aceitar a imagem como componente de sua autovisão —, os filmes egípcios e dos outros países árabes tomaram diretamente como modelo a produção ocidental. Parecem menos autênticos do que os hindus, mas a natureza do vínculo com o espectador é a mesma: dentro da maior ambiguidade e amesquinhados pela impregnação imperial, uns e outros asseguram a fidelidade do público por refletirem, mesmo palidamente, a sua cultura original.
Essa evocação de alguns traços das situações cinematográficas subdesenvolvidas mais importantes do mundo pode servir de introdução útil à nossa. A diferença e a parecença nos definem. A situação cinematográfica brasileira não possui um terreno de cultura diverso do ocidental onde possa deitar raízes. Somos um prolongamento do Ocidente, não há entre ele e nós a barreira natural de uma personalidade hindu ou árabe que precise ser constantemente sufocada, contaminada e violada. Nunca fomos propriamente ocupados. Quando o ocupante chegou, o ocupado existente não lhe pareceu adequado e foi necessário criar outro. A importação maciça de reprodutores, seguida de cruzamento variado, assegurou o êxito na criação do ocupado, apesar da incompetência do ocupante agravar as adversidades naturais. A peculiaridade do processo, o fato do ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste último, até certo ponto, o seu semelhante. Psicologicamente, ocupado e ocupante não se sentem como tais: de fato, o segundo também é nosso e seria sociologicamente absurdo imaginar a sua expulsão como os franceses foram expulsos da Argélia. Nossos acontecimentos históricos — Independência, República, Revolução de 1930 — são querelas de ocupantes nas quais o ocupado não tem vez. O quadro se complica quando lembramos que a metrópole de nosso ocupante nunca se encontra onde ele está, mas em Lisboa, Madri, Londres ou Washington. Aqui apontaria algum parentesco entre o destino hindu ou árabe e o nosso, mas a luz que o seu aprofundamento lançaria sobre os respectivos cinemas seria indireta demais. Basta por ora atentar para a circunstância do emaranhado social brasileiro não esconder, para quem se dispuser a enxergar, a presença em seus postos respectivos do ocupado e do ocupante.
Não somos europeus nem americanos do Norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar. O fenômeno cinematográfico no Brasil testemunha e delineia muita vicissitude nacional. A invenção nascida nos países desenvolvidos chega cedo até nós. O intervalo é pequeno entre o aparecimento do cinema na Europa e na América do Norte e a exibição ou mesmo a produção de filmes entre nós nos fins do século XIX. Se durante aproximadamente uma década o cinema tardou em entrar para o hábito brasileiro, isso foi devido ao nosso subdesenvolvimento em eletricidade, inclusive na capital federal. Quando a energia foi industrializada no Rio, as salas de exibição proliferaram como cogumelos. Os donos dessas salas comerciavam com o filme estrangeiro, mas logo tiveram a ideia de produzir e assim, durante três ou quatro anos, a partir de 1908, o Rio conheceu um período cujo estudioso Vicente de Paula Araújo não hesita em denominar A Bela Época do Cinema Brasileiro. Decalques canhestros do que se fazia nas metrópoles da Europa e da América, esses filmes em torno de assuntos que no momento interessavam a cidade — crimes, política e outros divertimentos — não eram fautores de brasilianismos apenas na escolha dos temas, mas também na pouca habilidade com que era manuseado o instrumental estrangeiro. As fitas primitivas brasileiras, tecnicamente muito inferiores ao similar importado, deviam aparecer com maiores atrativos aos olhos de um espectador ainda ingênuo, não iniciado no gosto pelo acabamento de um produto cujo consumo apenas começara. O fato é que nenhum produto importado conheceu no período o triunfo de bilheteria deste ou daquele filme brasileiro sobre crime ou política, sendo de anotar que o público assim conquistado incluía a intelligentsia que circulava pela rua do Ouvidor e pela recém-inaugurada avenida Central. Essa florescência de um cinema subdesenvolvido necessariamente artesanal coincidiu com a definitiva transformação, nas metrópoles, do invento em indústria, cujos produtos se espalharam pelo mundo suscitando e disciplinando os mercados. O Brasil, que importava de tudo — até caixão de defunto e palito —, abriu alegremente as portas para a diversão fabricada em massa e certamente não ocorreu a ninguém a ideia de socorrer nossa incipiente atividade cinematográfica.
O filme brasileiro primitivo foi rapidamente esquecido, rompeu-se o fio e nosso cinema começou a pagar o seu tributo à prematura e prolongada decadência tão típica do subdesenvolvimento. Arrastando-se na procura da subsistência, tornou-se um marginal, um pária numa situação que lembra a do ocupado, cuja imagem refletiu com frequência nos anos 1920, provocando repulsa ou espanto. Esse tipo de documento, quando verdadeiro, nunca é belo e tudo ocorria como se a inabilidade do cinegrafista concorresse para revelar a dura verdade que traumatizou não só os cronistas liberais da imprensa carioca mas também um conservador como Oliveira Viana. Essas imagens da degradação humana afloravam também nos filmes de enredo que iam sendo produzidos ocasionalmente e que vez ou outra obtinham exibição normal graças à complacência, sempre passageira, do comércio norte-americano. Era pela força das coisas que essas fitas se mostravam contundentes, pois os denodados lutadores do filme brasileiro que surgiram na era do mudo se esforçavam em impedir a imagem da penúria, substituída pela fotogenia amável de inspiração norte-americana.
Logo após o estrangulamento do primeiro surto cinematográfico brasileiro, os norte-americanos varreram os concorrentes europeus e ocuparam o terreno de forma praticamente exclusiva. Em função deles e para eles o comércio de exibição foi renovado e ampliado. Produções europeias continuaram a pingar, mas durante as três gerações em que o filme foi o entretenimento principal, cinema no Brasil era fato norte-americano e, de certa forma, também brasileiro. Não é que tenhamos nacionalizado o espetáculo importado como os japoneses o fizeram, mas acontece que a impregnação do filme americano foi tão geral, ocupou tanto esforço na imaginação coletiva de ocupantes e ocupados, excluídos apenas os últimos estratos da pirâmide social, que adquiriu uma qualidade de coisa nossa na linha de que nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A amplíssima satisfação causada pelo consumo do filme americano não satisfazia, porém, o desejo de ver expressa uma cultura brasileira que, sem ter uma originalidade básica — como a hindu ou a árabe — em relação ao Ocidente, fora se tecendo com características próprias indicativas de vigor e personalidade. A penetração do cinema amesquinhou muito as artes do espetáculo tradicionalmente tão vivas em todo o país, mas elas sempre encontraram meios de permanecer, o que faz pensar que correspondem a necessidades profundas de expressão cultural. A chegada do rádio deu novo alento às formas ou elementos sonoros dessas artes de espetáculo. Na primeira oportunidade que se ofereceu, a cultura popular violou o monopólio norte-americano e se manifestou cinematograficamente. Por ocasião da implantação do cinema falado, que coincidiu com a grande crise de Wall Street, houve um transitório alívio da presença norte-americana, seguido imediatamente pelo renascimento de nossa produção. Durante cerca de dois anos a cultura caipira, originalmente comum a fazendeiros e colonos e de larga audiência nas cidades, tomou forma cinematográfica, o mesmo sucedendo com nossa expressão musical urbana. Esses filmes tiveram imensa audiência em todo o Brasil, mas em breve as coisas cinematográficas do país voltaram ao eixo norte-americano e o cinema brasileiro mais uma vez pareceu morrer, isto é, retornou à condição de marginal rejeitado apesar da qualidade artística crescente de algumas de suas obras da década de 1930. A obrigatoriedade de exibição forneceu uma base sólida para a produção de filme curto documental, destituído agora da função reveladora que anteriormente o caracterizara tão agudamente. Continuou em todo caso a refletir com melancolia a área do ocupante, notadamente as cerimônias oficiais. De uma maneira geral, entretanto, o cinema falado foi, mais do que o mudo, propício à expressão nacional.
O fenômeno cinematográfico que se desenvolveu no Rio de Janeiro a partir dos anos 1940 é um marco. A produção ininterrupta durante cerca de vinte anos de filmes, musicais e de chanchada, ou a combinação de ambos, se processou desvinculada do gosto do ocupante e contrária ao interesse estrangeiro. O público plebeu e juvenil que garantiu o sucesso dessas fitas encontrava nelas, misturados e rejuvenescidos, modelos de espetáculo que possuem parentesco em todo o Ocidente mas que emanam diretamente de um fundo brasileiro constituído e tenaz em sua permanência. A esses valores relativamente estáveis os filmes acrescentavam a contribuição das invenções cariocas efêmeras em matéria de anedota, maneira de dizer, julgar e de se comportar, fluxo contínuo que encontrou na chanchada uma possibilidade de cristalização mais completa do que anteriormente na caricatura ou no teatro de variedades. Quase desnecessário acrescentar que essas obras, com passagens rigorosamente antológicas, traziam, como seu público, a marca do mais cruel subdesenvolvimento; contudo, o acordo que se estabelecia entre elas e o espectador era um fato cultural incomparavelmente mais vivo do que o produzido até então pelo contato entre o brasileiro e o produto cultural norte-americano. Neste caso o envolvimento era inseparável da passividade consumidora ao passo que o público estabelecia com o musical e a chanchada laços de tamanha intimidade que sua participação adquiria elementos de criatividade. Um universo completo se construía através da sucessão de filmes norte-americanos, mas a absorção feita através do distanciamento o tornava abstrato, enquanto os fragmentos irrisórios de Brasil propostos por nossos filmes delineavam um mundo vivido pelos espectadores. A identificação provocada pelo cinema americano modelava formas superficiais de comportamento em moças e rapazes vinculados aos ocupantes; em contrapartida a adoção, pela plebe, do malandro, do pilantra, do desocupado da chanchada sugeria uma polêmica de ocupado contra ocupante.
O eco do lucro alcançado por essa produção carioca despretensiosa e artesanal teve, nos primórdios de 1950, um papel determinante na tentativa paulista de um cinema mais ambicioso no nível industrial e artístico. Alguns motivos do malogro são claros. Os produtores cariocas eram comerciantes da exibição e a conjuntura criada nos anos 1940 lembrava a bela época do cinema brasileiro no começo do século. Os empresários paulistas que se lançaram à aventura vinham de outras atividades e nutriam a ilusão ingênua de que as salas de cinema existem para passar qualquer fita, inclusive as nacionais. Culturalmente o projeto foi igualmente desastrado. Não reconhecendo a virtude popular do cinema carioca, os paulistas resolveram — encorajados por quadros técnicos e artísticos chegados recentemente da Europa — colocar o filme brasileiro num rumo totalmente diverso daquele que estava seguindo de maneira tão estimulante. Quando descobriram, mais ou menos ao acaso, o veio do cangaço ou apelaram conscientemente para a comédia do rádio, nascida nos mambembes do interior e do subúrbio, já era tarde.
A animação provocada pela tentativa industrial foi, porém, positiva e o seu fracasso não alterou a ascensão quantitativa e qualitativa do filme brasileiro. A marginalização de nosso filme de enredo não era mais, como antigamente, um fenômeno aparentemente tão natural que ninguém tomava conhecimento dele a não ser os diretamente interessados. O fato de setores ponderáveis da área ocupada terem se chamuscado com o cinema nacional fez dele um assunto mais sensibilizante. Sua mediocridade não impedia sua função e não escondia sua presença. As ocasionais e paternalistas medidas de amparo do poder público começaram a ser cobradas com exigência crescente. Mais de uma vez o governo forneceu a ilusão de que estava sendo delineada uma política cinematográfica brasileira, mas a situação básica nunca se alterou. O mercado permaneceu ocupado pelo estrangeiro de cujos interesses o nosso comércio cinematográfico é, no conjunto, o representante direto. A ação governamental, pressionada pelo desejo de lucro dos produtores brasileiros, representando na circunstância o interesse dos ocupados, se limitou sempre a procurar obter junto aos ocupantes estrangeiros e nacionais uma pequena reserva de mercado para o produto local. Como a solidariedade fundamental do poder público é com o ocupante, do qual emana, é claro que a pressão do último sempre foi decisiva. Mesmo depois do cinema ter perdido em favor da televisão a predominância no campo do entretenimento, não se alterou substancialmente o escandaloso desequilíbrio entre o interesse nacional e o estrangeiro. De qualquer maneira a concessão, por mais modesta que fosse, assegurou um respiradouro para o nosso cinema de ficção. A habitual impregnação estrangeira não impediu que os filmes continuassem nos refletindo muito. A voga do neorrealismo, logo após o término da guerra, teve consequências extremamente frutuosas para nós. Aconteceu que o difuso sentimento socialista que se alastrou a partir do fim dos anos 1940 envolveu muita gente de cinema e particularmente as personalidades mais criativas surgidas após o malogro do surto industrial em São Paulo. O próprio comunismo político, ortodoxo e estreito, acabou tendo uma função cultural na medida em que por um lado procurava, mesmo desajeitadamente, compreender a vivência dos ocupados e por outro encorajava a leitura de grandes escritores membros ou simpatizantes do Partido, Jorge Amado, Graciliano Ramos ou Monteiro Lobato. Esse clima intelectual e mais a prática do método neorrealista conduziram à realização de alguns filmes do Rio e São Paulo que glosavam artisticamente a vida popular urbana. O antigo herói desocupado da chanchada foi suplantado pelo trabalhador, mas nos espetáculos cinematográficos que essas fitas proporcionavam, os ocupados estavam muito mais presentes na tela do que na sala. Em matéria de construção dramática consistente e eficaz, essas obras deixaram longe não só a tenaz chanchada carioca mas também os produtos mais ou menos diretos da efêmera industrialização paulista. No terreno das ideias a contribuição que trouxeram foi ainda maior. Sem ser propriamente políticas ou didáticas, essas fitas exprimiam uma consciência social corrente na literatura pós-modernista mas inédita em nosso cinema. Além de um vasto elenco de méritos intrínsecos, esses poucos filmes realizados por dois ou três diretores constituíram o tronco poderoso do qual se esgalhou o Cinema Novo.
O Cinema Novo é, depois da Bela Época e da Chanchada, o terceiro acontecimento global de importância na história de nosso cinema, cabendo notar que apenas o segundo teve um desenvolvimento harmonioso, devido a sua melhor adequação e submissão à condição geral do subdesenvolvimento. Como o da Bela Época, o Cinema Novo viveu uma meia dúzia de anos sendo que ambos tiveram o seu destino truncado, o primeiro pela pressão econômica do império estrangeiro, o segundo pela imposição política interna. Apesar da diversidade de circunstâncias o que sucedeu a um e outro se insere no quadro geral da ocupação. O Cinema Novo é parte de uma corrente mais larga e profunda que se exprimiu igualmente através da música, do teatro, das ciências sociais e da literatura. Essa corrente — composta de espíritos chegados a uma luminosa maturidade e enriquecida pela explosão ininterrupta de jovens talentos — foi por sua vez a expressão cultural mais requintada de um amplíssimo fenômeno histórico nacional. Tudo ainda está muito perto de nós, nenhum jogo fundamental foi feito ou desfeito e os dias que correm não facilitam a procura de uma perspectiva equilibrada sobre o que aconteceu. Resta a possibilidade de uma visão genérica em termos de ocupado e ocupante que nos aproxime da significação do Cinema Novo no processo.
Qualquer estatística de variada origem que a imprensa divulga confirma o que percebe a intuição ética a respeito da deformidade do corpo social brasileiro. Toda a vida nacional em termos de produção e consumo que possam ser definidos envolve apenas 30% da população. A força produtora urbana e rural com identidade nítida, os estratos medianos em sua complexa graduação, as massas dos comícios de antigamente e que hoje só o futebol é autorizado a estruturar, tudo está englobado na minoria hoje de 30 milhões, o único povo brasileiro a respeito do qual alcançamos um conceito e sobre o qual podemos pensar. A impressão que se tem é a de que o ocupante só utiliza uma parcela pequena de ocupados e abandona o resto ao deus-dará em reservas e quilombos de novo tipo. Esse resto, hoje de 70 milhões, vai fornecendo a conta-gotas o reforço de que o ocupante lança mão para certas atividades como, por exemplo, a construção de Brasília ou a interminável reconstrução do monstro urbano paulistano, a face mais progressista de nosso subdesenvolvimento. Nessas ocasiões as poucas centenas de milhares que escapam ao universo informe das muitas dezenas de milhões adquirem uma identidade: candango ou baiano.
Foi precisamente de iniciativas governamentais na segunda metade dos anos 1950 que surgiu a procura de um melhor equilíbrio nacional. O ocupante sem imaginação libelou a animação social que daí decorreu com um slogan: a subversão em marcha. É possível que o próprio ocupante otimista, desejoso de ver integrados à nação os 70% de marginais, não atinasse para a singularidade da situação criada. O fenômeno brasileiro é daqueles cuja originalidade está a exigir uma expressão nova. À palavra “subversão”, tacanha e em última análise ingênua, pode ser oposta a noção de superversão, que resume com maior probidade as ocorrências que se desenvolveram até meados de 1964. A realidade que então se impôs foi a de que os verdadeiros marginais são os 30% selecionados para constituir a nação. O estabelecimento de canais comunicantes entre esta minoria e o universo imenso dos restantes estava a exigir o deslocamento dos eixos habituais da história brasileira. Um primeiro passo consistia em encorajar o descobrimento ativo por parte de todos do que possa ser a vida humana. O poder público participou da nobre esperança — notadamente através de um método de alfabetização cuja prática chegou a ser delineada — que impregnou até uma mensagem presidencial, documento que por esse motivo será um dia um dos clássicos da democracia brasileira. O setor artístico jovem, inseparável do público intelectual igualmente jovem que suscitou, foi sem dúvida o que melhor refletiu o clima criativo e generoso então reinante, inclusive através de obras dotadas de valores permanentes. Nesse terreno foi grande o papel do cinema.
Os quadros de realização e, em boa parte, de absorção do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. A aspiração dessa juventude foi a de ser ao mesmo tempo alavanca de deslocamento e um dos novos eixos em torno do qual passaria a girar a nossa história. Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente ela própria, falando e agindo para si mesma. Essa delimitação ficou bem marcada no fenômeno do Cinema Novo. A homogeneidade social entre os responsáveis pelos filmes e o seu público nunca foi quebrada. O espectador da antiga chanchada ou o do cangaço quase não foram atingidos e nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir. Apesar de ter escapado tão pouco ao seu círculo, a significação do Cinema Novo foi imensa: refletiu e criou uma imagem visual e sonora, contínua e coerente, da maioria absoluta do povo brasileiro disseminada nas reservas e quilombos, e por outro lado ignorou a fronteira entre o ocupado dos 30% e o dos 70%. Tomado em conjunto, o Cinema Novo monta um universo uno e mítico integrado por sertão, favela, subúrbio, vilarejos do interior ou da praia, gafieira e estádio de futebol. Esse universo tendia a se expandir, a se complementar, a se organizar em modelo para a realidade, mas o processo foi interrompido em 1964. O Cinema Novo não morreu logo e em sua última fase — que se prolongou até o golpe de Estado que ocorreu no bojo do pronunciamento militar — voltou-se para si próprio, isto é, para seus realizadores e seu público, como que procurando entender a raiz de uma debilidade subitamente revelada, reflexão perplexa sobre o malogro acompanhada de fantasias guerrilheiras e anotações sobre o terror da tortura. Nunca alcançou a identificação desejada com o organismo social brasileiro, mas foi até o fim o termômetro fiel da juventude que aspirava a ser a intérprete do ocupado.
Desintegrado o Cinema Novo, os seus principais participantes, agora órfãos de público catalisador, se dispersaram em carreiras individuais norteadas pelo temperamento e gosto de cada um, dentro do condicionamento estreito que envolve todos. Nenhum deles, porém, se instalou na falta de esperança que cercou a agonia desse cinema. A linha do desespero foi retomada por uma corrente que se opôs frontalmente ao que tinha sido o cinemanovismo e que se autodenominou, pelo menos em São Paulo, Cinema do Lixo. O novo surto situou-se na passagem dos anos 1960 para os 1970 e durou aproximadamente três anos. A vintena de filmes produzidos se situou, com raras exceções, numa maior ou menor área de clandestinidade decorrente de uma opção fortalecida pelos obstáculos habituais do comércio e da censura. O Lixo não é claro como a Bela Época, a Chanchada ou o Cinema Novo, onde se formou a maior parte de seus quadros. Estes poderiam, em outras circunstâncias, ter prolongado e rejuvenescido a ação do Cinema Novo cujo universo e tema retomam em parte, mas agora em termos de aviltamento, sarcasmo e uma crueldade que nas melhores obras se torna quase insuportável pela neutra indiferença da abordagem. Conglomerado heterogêneo de artistas nervosos da cidade e de artesãos do subúrbio, o Lixo propõe um anarquismo sem qualquer rigor ou cultura anárquica e tende a transformar a plebe em ralé, o ocupado em lixo. Esse submundo degradado percorrido por cortejos grotescos, condenado ao absurdo, mutilado pelo crime, pelo sexo e pelo trabalho escravo, sem esperança ou contaminado pela falácia, é, porém, animado e remido por uma inarticulada cólera. O Lixo teve tempo, antes de perfazer sua vocação suicida, de produzir um timbre humano único no cinema nacional. Isolada na clandestinidade, esta última corrente de rebeldia cinematográfica compõe de certa forma um gráfico do desespero juvenil no último quinquênio. Não foi, porém, somente através do Lixo que o nosso filme se vinculou de maneira aguda às preocupações brasileiras do período. O setor documental com intenções culturais e didáticas reassumiu, em nível de consciência e realização mais alto, a função reveladora que o gênero desempenhara anteriormente. Focalizando sobretudo as formas arcaicas da vida nordestina e constituindo de certa forma o prolongamento, agora sereno e paciente, do enfoque cinemanovista, esses filmes documentam a nobreza intrínseca do ocupado e a sua competência. Quando se voltou para o cangaço esse cinema o evocou com uma profundidade — só igualada num recente programa de televisão —1 de que a melhor ficção fora incapaz.
Qualquer filme exprime ao seu jeito muito do tempo em que foi realizado. Boa parte da produção contemporânea participa alegremente do atual estágio de nosso subdesenvolvimento: o Milagre brasileiro. Apesar do ocupante permanecer desinteressado em relação ao nosso cinema,2 a presente euforia dos donos do mundo encontra meios de se transmitir a muitos de nossos filmes. Ela se manifesta sobretudo em comédias ligeiras — também em um ou outro drama epidérmico — situadas quase sempre em invólucros coloridos e luxuosos que espumam prosperidade. O estilo é próximo dos documentais publicitários cheios de fartura, ornamentados por imagens fotogenicamente positivas do ocupado e pelo bamboleio amável de quadris nas praias da moda, combinadas ao louvor de autoridades militares e civis. Essa simultaneidade audiovisual um pouco insólita não significa que um setor qualquer do poder público tenha inspirado — dentro da fórmula de que hoje o circo complementar do pão é o sexo — o erotismo que irrompeu no cinema brasileiro de uns anos para cá. A ideia divertida infelizmente não é verdadeira; foi certamente propalada por espíritos desconfiados e insensatos, mas chegou a intrigar as altas esferas. Essa facilidade de circulação da tolice nos tempos que correm esclarece em todo caso a relutância oficial diante do condimento mais atraente que possui o espetáculo de um Brasil milagroso, com muito apetite e tendo como satisfazê-lo, morando bem e vestindo-se melhor, trabalhando pouco e sem problemas de locomoção. O erotismo desses filmes, apesar do afobamento, da vulgaridade ineficaz, da tendência autodestruidora em acentuar nos quadris as nádegas e no seio a mama, é com efeito o que têm de mais verdadeiro, particularmente quando retratam a obsessão sexual da adolescência. De qualquer maneira e apesar de tudo vão essas fitas cumprindo bem a missão de tentar substituir o produto estrangeiro. Não obstante a proliferação, constituem elas apenas uma parte da centena de filmes brasileiros produzidos anualmente dentro do tecido habitual de embaraços, ainda intacto, criado pelos interesses das metrópoles.
O leque extremamente variado de produtos que o cinema nacional de hoje propõe ao mercado confirma a sua vocação em exprimir e satisfazer a complexa gradação de nossa cultura. Se a chanchada e parcialmente o melodrama foram aspirados pela televisão, o filme caipira não perdeu vigor nas cidades grandes e pequenas. Estas últimas alentam dramas e comédias associadas a cantores sertanejos e outros filmes sentimentais de diversa natureza que percorrem quase despercebidos os mercados mais densos. A safra atual de aventuras rurais derivada do cangaço é vista exclusivamente no interior ou, talvez, numa ou noutra capital menor. Um público difícil de definir e localizar exatamente assegura a continuidade de dramas psicológicos situados na esfera mais alta — a figura do ocupante não é encarnada apenas pelo frascário da comédia erótica — ou procura espelhar a crise no relacionamento familiar e no comportamento social da população mediana. Filmes históricos nascem de uma superprodução faustosa ou de um empenho intelectual e artístico exemplar e as duas categorias, tão discrepantes, têm função útil: a primeira fornece uma sucessão de cromos convencionais que correspondem, porém, a uma de nossas matrizes, a cultura cívica primária, enquanto a segunda suscita reflexão crítica a respeito do que fomos e somos. A autoridade pública encoraja uma com benevolência e recua vivamente diante da outra.
A legislação paternalista — promulgada para compensar a ocupação do mercado pelo estrangeiro — pode ter consequências econômicas de algum vulto e a frequente retração governamental diante de nossos melhores filmes inclina os seus autores a buscar financiamento nas metrópoles culturais, onde adquiriram prestígio intelectual desde os tempos do Cinema Novo, em parte graças à moda Terceiro Mundo nos países do Primeiro. Os melhores quadros de nosso cinema ainda derivam, com efeito, do cinemanovismo e de suas adjacências ou mesmo dos precursores imediatos. A ruptura na natureza do processo criativo em que se envolveram, entre doze e dezoito anos atrás [1955-61], impediu qualquer amadurecimento coletivo. O salve-se quem puder ideológico e artístico iniciado em 1968 deslocou o eixo da criatividade, a crise individual substituindo a social e permitindo que quarentões vividos experimentassem uma nova juvenilidade. Os fragmentos da crença antiga foram manipulados e triturados pelo deus ou demônio íntimo de cada um, mas continuou fecundante a poeira da construção coletiva sonhada por todos. As obras individuais das maiores figuras que o cinema brasileiro já conheceu estão longe de terem sido completadas, elas continuam a se tecer diante de nossos olhos e seria prematuro tentar abarcá-las. A amizade teve papel importante na constituição do cinemanovismo e a permanência da camaradagem nascida na idade do ouro indicaria a persistência de uma comunhão cuja face nova ainda não se revelou. Há um clima nostálgico no moderno filme brasileiro de qualidade e é possível que esteja se delineando em torno do índio o sentimento nacional de remorso pelo holocausto do ocupado original. O que há de mais profundamente ético na cultura brasileira nunca cessará de dessoldar-se do ocupante. Cabe ainda sublinhar o fato de que o melhor cinema nacional não tem mais como antigamente um destinatário certo e assegurado. Seus autores defrontam um público não identificado envolvido pela rede do comércio e são constrangidos a conviver com a burocracia ocupante desconfiada quando não hostil. A ocorrência de uma larga comunicação com os espectadores é por demais ocasional para dissipar o intrincado mal-estar em que se debatem. Nos piores momentos a alternativa para a opacidade é o vácuo. Nessas condições não é de espantar que na busca de reconhecimento se voltem para a cultura das metrópoles e com isso prejudiquem a nossa.
Se em determinado momento o Cinema Novo ficou órfão de público, a recíproca teve consequências ainda mais aflitivas. O núcleo de espectadores recrutados na intelligentsia — particularmente em seus setores juvenis — tendia por um lado a se ampliar socialmente e por outro a se interessar por outras faces do filme brasileiro além da cinemanovista. A deterioração da conjuntura estimulante dos inícios de 1960 fez com que o público intelectual que corresponde hoje ao daquele tempo se encontre órfão de cinema brasileiro e voltado inteiramente para o estrangeiro onde julga às vezes descobrir alimento para sua inconfidência cultural. Na realidade ele encontra apenas uma compensação falaciosa, uma diversão que o impede de assumir a frustração, primeiro passo para ultrapassá-la. Rejeitando uma mediocridade, com a qual possui vínculos profundos, em favor de uma qualidade importada das metrópoles com as quais tem pouco o que ver, esse público exala uma passividade que é a própria negação da independência a que aspira. Dar as costas ao cinema brasileiro é uma forma de cansaço diante da problemática do ocupado e indica um dos caminhos de reinstalação na ótica do ocupante. A esterilidade do conforto intelectual e artístico que o filme estrangeiro prodiga faz da parcela de público que nos interessa uma aristocracia do nada, uma entidade em suma muito mais subdesenvolvida do que o cinema brasileiro que desertou. Não há nada a fazer a não ser constatar. Este setor de espectadores nunca encontrará em seu corpo músculos para sair da passividade, assim como o cinema brasileiro não possui força própria para escapar ao subdesenvolvimento. Ambos dependem da reanimação sem milagre da vida brasileira e se reencontrarão no processo cultural que daí nascerá.
Confronto, de Humberto Mesquita. Emissão da TV Gazeta (Canal 11), jul. 1973. [N. A.]
A recíproca nunca foi verdadeira. O ocupante foi tratado, em geral, de maneira respeitosa pelo cinema mudo, foi gozado pela Chanchada e fustigado pelo Cinema Novo, ao mesmo tempo que uma tendência nascida do malogro industrial paulista se interessava pelo tédio existencial do ocupante ocioso. [N. A.]