por Paulo Emílio Sales Gomes
Walter Wanger apresentou
The Long Voyage Home
[A longa viagem de volta]
Produção de John Ford
Corpo artístico e técnico
Direção — John Ford
Argumento — baseado em quatro peças de Eugene O’Neill
Cenário [roteiro] — Dudley Nichols
Efeitos especiais — James Basevi
Cameraman — Gregg Toland
Fotografia — Ned Scott
Música — Richard Hageman
Elenco
Ollie, marinheiro sueco que quer comprar uma fazenda — John Wayne
Drisc, um irlandês valente pronto para tudo — Thomas Mitchell
Smitty, um inglês educado, que tem uma tragédia em sua vida — Ian Hunter
O Capitão — Wilfrid Lawson
Cocky, um copeiro irrequieto e reclamador — Barry Fitzgerald
Freda, a mulher da taberna do Joe — Mildred Natwick
Axel, um norueguês sentimental que toca clarineta — John Qualen
Yank, um marinheiro americano — Ward Bond
Donkey Man, o marinheiro cético — Arthur Shields
Davis, simplesmente um homem do mar — Joseph Sawyer
Nick, um crimp de Limehouse — Joseph M. Kerrigan
A primeira coisa a ser dita sobre The Long Voyage Home é que esse filme nos dá essa impressão de nobreza que os críticos franceses procuravam, e encontravam, no cinema da era silenciosa. Essa nobreza que no ano cinematográfico de 1940 só nos foi sugerida pelo Grapes of Wrath [Vinhas da ira] do próprio John Ford e, sobretudo, pelo Alexander Nevski [Cavaleiros de ferro] de Eisenstein; e eu não estou me esquecendo do Of Mice and Men [Carícia fatal] de Lewis Milestone, nem do Our Town [Nossa cidade] de Sam Wood.
Como em todo grande espetáculo de homens, o problema em torno do qual se desenvolve The Long Voyage Home é o do Destino. No espetáculo humano, os homens ou sofrem e suportam o Destino, e é o Drama, ou então reagem contra ele, forjam um outro Destino, e é a Epopeia.1 No The Long Voyage Home quem impera, implacável, é o Destino: é a história de um punhado de homens condenados ao mar.
É preciso desde logo ser desfeito um equívoco provável. Pelo fato de ser um filme sem astros, pode-se ser levado a catalogar The Long Voyage Home como um filme coletivo no sentido dos russos clássicos. Ora, isso é errado. A meia dúzia de atores de primeiro plano do The Long Voyage Home pode representar a massa dos homens que trabalham no mar, mas eles não são essa massa; ao passo que no Potemkin2 é a totalidade dos marinheiros que trabalha e age, é a totalidade dos oficiais que é trucidada, é a totalidade dos soldados da repressão que marcha, é a totalidade do povo de Odessa que surge. Os close-ups não indicam nenhuma hierarquia de atores, mas unicamente detalham e condensam alguns aspectos de uma coletividade homogeneizada. Mesmo a repetição de imagens de algumas figuras humanas não significa maior importância dessas figuras, trata-se aqui, unicamente, de uma repetição de temas numa sinfonia de imagens.
No The Long Voyage Home há caracteres. Inicialmente os dois mais diferentes dos outros, Smitty, o homem que tem um drama terrível em sua vida e que bebe, e Donkey Man, o cético resignado do S.S. Glencairn, sempre com seu cachimbo e seu jornal. Em seguida dois ingênuos, o grandão sueco Ollie, o dono do papagaio, que quer deixar de ser marinheiro e comprar uma fazenda, e o sentimental norueguês Axel, com sua clarineta e a preocupação em fazer com que Ollie volte para o lar. Depois os três másculos, Drisc, um irlandês disposto, Yank, um marinheiro americano, e Davis, simplesmente um homem do mar. O patusco e reclamador copeiro Cocky e Scotty, que canta canções irlandesas, completam o grupo. Há ainda o orangotango com seus olhos extraordinários, ora brilhando de lubricidade, ora de emoção, o cozinheiro preto e mais uma série de homens em segundos e terceiros planos que completam a equipagem do navio.
Nas imagens em que é focalizado mais de perto o destino desses homens, entretanto, os caracteres fundem-se e processa-se a homogeneização. Quando os homens desembarcam em Londres dispostos a não mais voltar para o navio, aquelas sombras que descem apressadamente pela ponte não se distinguem mais umas das outras; são simplesmente homens que não querem mais aquilo, que querem ter uma vida diferente, que querem fugir. Exceto naturalmente o filósofo Donkey Man, que nem sequer saiu de bordo. Mas esses homens não chegam a pisar em terra propriamente firme e seca. Limitam-se a perambular pelas ruelas sórdidas e úmidas do Limehouse londrino, e retomam logo o caminho que os levará de volta ao navio, ao mar. Depois de tentarem entrar em um baile que era reservado para os soldados que deviam partir para o front, Drisc tem uma tirada sobre o black-out, teatral é verdade mas que permite a entrada do crimp Nick, que mais uma vez os convida para ir à taberna do Joe. E, um a um, Drisc em primeiro lugar, todos dobram a esquina. O final é patético. No cais, num dia muito claro que já secou as poças das ruas de Limehouse, eles surgem de volta, um a um, abatidos, igualados no mesmo drama; mesmo o irrequieto Cocky que provavelmente mais uma vez reclamou, e que é levado à força pelo Destino, representado na circunstância por um par de imensos policemen [policiais] ingleses. Drisc não voltou porque partira no Amindra e Ollie parece que voltou para a Suécia. Mas essa tentativa de happy end parcial não nos convence.
Na boa crítica que Guilherme de Almeida escreveu sobre The Long Voyage Home há uma aproximação estranha entre o filme de John Ford e as grandes obras russas; o crítico do Estado de S. Paulo diz que The Long Voyage Home pertence à mesma linhagem do grande cinema soviético. Ora, isso não é verdade. Para os russos do grande período 1923-7, a preocupação primordial na feitura de um filme é a montagem — disposição das imagens sucessivas de tal maneira que seja criado um ritmo, do qual dependerá a unidade real do filme. No The Long Voyage Home não há essa preocupação e tocamos aqui no defeito mais grave desse filme. The Long Voyage Home é um filme sem unidade, unidade rítmica, de montagem, que está à base de uma unidade total. Essa falta de unidade é entretanto camuflada por uma insistente unidade de atmosfera, de décors. Porém, essa unidade de atmosfera colocada arbitrariamente sobre uma montagem descuidada transforma-se evidentemente num artifício.
Em compensação, as imagens, de per se, foram extraordinariamente cuidadas, e algumas foram trabalhadas e construídas como se se tratasse de um quadro. O produtor Wanger convidou nove pintores para virem se inspirar em cenas do The Long Voyage Home, a fim de pôr à prova o valor pictórico das imagens do filme. Uma das vezes que assisti a The Long Voyage Home estava em companhia do poeta Zuccolotto, que de vez em quando exclamava diante de alguma imagem particularmente réussie [bem-sucedida] — “Mas é completo, é um quadro perfeitamente autônomo”. E ele tinha razão. Ora, está sendo feita uma grande confusão, e mais uma vez precisamos focalizar o debatido problema — Pintura e Cinema. Cinema não é uma sucessão de imagens perfeitas; no Cinema as imagens não podem ser perfeitas por si sós, a perfeição e o conteúdo cinematográficos devem ser procurados na relação das imagens entre elas. O Cinema exige das imagens e cenas, tomadas isoladamente, uma certa imperfeição. Uma imperfeição que apela para a imagem seguinte e assim por diante. O Cinema é um fluxo contínuo. É nesse sentido que se fala tanto da Arte do Movimento. Aliás a propósito de Pintura também se fala muito em movimento. “L’une et l’autre, [as duas artes] reproduisent la mobilité; mais la peinture c’est la mobilité suspendue; et le cinéma, la mobilité en devenir” [Ambas reproduzem a mobilidade, mas a pintura é a mobilidade suspensa, e o cinema, a mobilidade em progressão] (Schwob).
No The Long Voyage Home as cenas prendem demais a atenção. Quando se assiste ao filme novamente, a partir da segunda vez, esperam-se algumas cenas enquanto se examinam uns belos quadros. O verdadeiro centro de interesse do filme se desloca e não é mais constituído pelo “seul développement de la mobilité” [apenas (pelo) desenvolvimento da mobilidade] (Schwob).
No entretanto, por duas vezes durante o desenrolar do filme há um impulso ritmado. Por uma coincidência singular, essas duas vezes são momentos silenciosos, não falados, só sonoros. A primeira é o começo do filme, e não chega a ficar comprometida pelas convencionais belezas tropicais que são apresentadas:
a) A silhueta negra de um navio. De noite.
b) Mulheres, décor tropical, palmeiras.
c) A popa do navio descentrada para a esquerda. Ângulo baixo.
d) Mulheres mais de perto. No fundo, a silhueta do navio.
e) Dois homens na amurada do navio olhando para a terra.
f) Big close-up [primeiríssimo-plano] de mulher tropical. Ombros nus.
g) Imagem e. Sai um homem e vem outro para o lugar.
Esse desenvolvimento de unicamente sete imagens sucessivas, além de colocar imediatamente a situação, é extraordinariamente sugestivo no que se refere ao estado de espírito dos homens que estão a bordo.
O segundo momento é a partida do navio carregado de munições para atravessar o Atlântico. O marinheiro Smitty tentou fugir, é trazido de volta no último momento:
a) É levantada a escada.
b) Apito do navio.
c) Um homem na amurada do navio, bem à esquerda da imagem. O navio começa a se movimentar lentamente e surge na imagem um outro homem na amurada do navio, que estava ao lado do primeiro.
d) Navio saindo lentamente. A câmera faz um movimento combinado, aproxima-se do navio e percorre-o.
e) Outros homens na amurada.
f) Navio em pleno mar. Escuridão.
g) Convés. Mudança de vigia.
No quadro desolador do cinema americano contemporâneo, isso significa alguma coisa.
Examinados estes aspectos gerais do The Long Voyage Home, podemos agora percorrer novamente o filme, vendo tanta riqueza dispersa, lembrando tanta coisa que amamos tanto.
A cena da festa e briga a bordo positivamente não me interessa. Exceto dois momentos: 1º) o marinheiro Yank dançando com uma das mulheres que vieram a bordo (Carmem Morales). A câmera foi colocada num ângulo baixo e focaliza o casal da cintura para cima. Yank e a mulher parecem despegados do chão, suspensos no espaço, e balançam; 2º) no meio da briga o marinheiro Yank despenca da coberta e cai ao lado de algumas mulheres. Instantaneamente ele agarra uma das mulheres, beija-lhe brutalmente a boca, joga-a de lado, e volta para a luta. Que bela combinação da vontade de luta e do desejo, integrados numa mesma ferocidade.
Intercalado na cena da festa e briga, há um diálogo entre Smitty, o homem que tem um drama, e o filósofo e cético Donkey Man. É flagrante que essa cena é inútil. Nós sabíamos que ambos eram diferentes desde o começo do filme quando, enquanto os outros estão na amurada procurando na escuridão as mulheres que estão em terra, indiferentes à expectativa geral, eles ficam sentados no convés, Smitty com suas preocupações estampadas na sua fisionomia angustiada, e o outro com seu cachimbo, seu jornal e seu banquinho, porque ele tem um banquinho, e é o único que tem um banquinho.
O navio faz escala num porto americano para receber munições, e Smitty, que não quer, que não pode voltar para a Inglaterra, tenta desertar. A cena da fuga é sabiamente iluminada e gosta-se daquela corrida desesperada focalizada contra a luz, onde, na medida em que diminui a figura humana, a sombra projetada aumenta.
Há a tempestade, e eis-nos diante do mágico dos “efeitos especiais” James Basevi. A ele já devemos a cena dos gafanhotos em The Good Earth [Terra dos deuses], a tempestade do The Hurricane [O furacão], o terremoto do San Francisco e as cenas dos diques do The Rains Came [As chuvas chegaram]. Mas nesses filmes a participação de James Basevi é mais uma admirável demonstração de virtuosismo do que verdadeira integração dramática. Ao passo que no conjunto da cena da tempestade do The Long Voyage Home destaca-se um episódio cujo conteúdo dramático e emocional nos faz esquecer, o que é essencial, as habilidades técnicas empregadas para consegui-lo. Um dos marinheiros saiu em plena tempestade para firmar a âncora. É ferido e carregado pelos vagalhões que varrem o navio. Vê-se num convés em todo seu comprimento dois homens que vieram salvar o companheiro em luta contra toneladas de água que são despejadas pelo mar enfurecido. Cada onda inunda o convés em sentido horizontal e a tela em sentido vertical, e quando baixa o nível da água a cena continua a se desenrolar através de um véu líquido. É uma impressão total de afogamento.
Na morte de Yank, admiram-se algumas imagens estáticas dos espectadores de sua agonia e a cena final — o cadáver é focalizado de cima, a câmera movimenta-se para nos apresentar Axel, que chega com um remédio para aliviar as dores do marinheiro ferido. A cerimônia fúnebre é soberba e discreta: as águas agitadas de fim de tempestade dão ao navio um balanço que projeta em primeiro plano a silhueta dos marinheiros reunidos em torno do comandante para a última homenagem ao camarada que vai ser lançado ao mar; no horizonte despontam os primeiros clarões da madrugada. O comandante lê um trecho da Bíblia que lhe é quase arrancada das mãos pela ventania, o corpo é lançado ao mar, os homens dispersam-se rapidamente, e fica só Drisc, que dá alguns passos no convés, olha na direção em que foi lançado o corpo, anda um pouco mais perplexo, estupefato, varado.
Os vários episódios que culminam na leitura das cartas que Smitty guarda preciosamente numa caixinha são encadeados com muita habilidade. A cena da leitura das cartas é muito mais cinematográfica do que pode parecer à primeira vista. Com algumas modificações poderia ser inteiramente silenciosa. Todas as vezes que se assiste ao filme, renova-se a emoção diante daquelas fisionomias que se transformam, o abatimento de Smitty, a severidade gótica de Davis, o brilho líquido dos olhos do orangotango e de Axel, aquela mão que solta o ombro do acusado, e mesmo, honestamente, o extraordinário poder da voz de Thomas Mitchell. E a conclusão da cena, que provoca sempre o mesmo sentimento de suspensão melancólica: Smitty volta para seu posto de vigia, já então transformado num vulto na escuridão do convés; da parte superior do navio surge o outro vigia, um outro vulto, que pergunta para o vulto de baixo: “All right, Smitty?”. E o vulto de baixo responde: “All right, Ollie…”.
No dia seguinte os marinheiros estão deitados na coberta tomando sol, antegozando o momento da chegada que se aproxima. Chegamos à cena do ataque aéreo. A ideia de realizar um ataque aéreo sem mostrar aviões, cujo aparecimento é simplesmente indicado pelo zumbido dos motores, é no caso do The Long Voyage Home muito mais do que uma simples trouvaille [achado]. Para se evidenciar isso basta uma cena do bombardeio: as fisionomias dos homens em expectativa, procurando seguir com os olhos a intenção do aeroplano que mergulha sobre o navio, virados de frente para a câmera, e o explodir súbito de uma bomba a poucos metros atrás. The Long Voyage Home é o filme dos grandes fins de cena — temos aqui a morte de Smitty, metralhado quando tentava arrear um barco salva-vidas, seu último movimento tentando atirar um objeto qualquer contra o avião, a sua queda dentro da baleeira, aquele pé que desponta como um último gesto de ameaça, a coberta da baleeira soprada pela brisa e que envolve o cadáver. Precisam, naturalmente, ser feitas todas as restrições quanto ao gosto duvidoso daquela bandeira sobreimpressa sobre esta imagem final.
O navio chega a Londres e temos uma derradeira indicação sobre o drama de Smitty. Sabemos que bebe, teve um processo, chama-se na realidade Fenwick e tem dois filhos, Betsy e Jimmy, e uma mulher, Elisabeth. No cais vê-se a silhueta de Betsy e Jimmy, ouve-se um soluço de Elisabeth. Em seguida, a família de Smitty toma o automóvel, um Rolls-Royce com chofer, e parte. Intensidade. Sobriedade.
Os homens desembarcam e vindo das sombras surge Nick, o repelente crimp Nick, diante do qual eu me coloquei um problema social e moral que antes nunca me tinha ocorrido. Quando se lê nos jornais que todos os habitantes de Londres estão munidos de máscaras contra gás, tem-se uma sensação de conforto. Mas quando se vê Nick com sua máscara a tiracolo não se pode deixar de deplorar que no caso de um ataque a gás ele já esteja prevenido.
Depois de comprarem o bilhete de volta para Ollie, os marinheiros entram num bar para tomar “um” copo de cerveja. Na porta ficam à espera Ollie e Nick, que anda de um lado para o outro cantando uma canção patriótica. Nessa cena há um episódio que pode ser tomado como exemplo clássico do que seja concentração em Cinema. Além de Ollie e Nick, a cena mostra um mendigo violinista e um cego. A primeira vez que vi The Long Voyage Home não entendi por que o cego é, em determinado momento, mostrado com tanta evidência. Depois é que observei que o cego tem três medalhas militares. E imediatamente o episódio provoca um eco dramático extraordinário: um homem que perdeu a vista na Grande Guerra número um, depois de vinte anos de escuridão interior, pedindo esmolas no meio do black-out da Grande Guerra número dois. Além do que, durante todo o episódio, Nick continua com sua canção patriótica…
Finalmente Nick consegue arrastar os homens para a taberna do Joe, onde além da jig [tipo de dança] irlandesa, se realizam duas cenas que interessam, aliás por motivos diferentes, mas que estão fora do filme. A primeira é a cena em que é cantada “Irish Eyes”. Estamos longe dos shows arbitrários com que os filmes americanos nos desgostam de tempo em tempo. Além da preocupação pictórica suspeita, a que já nos referimos em outro ponto desse artigo, há nessa imagem, em que homens embriagados se comovem até às lágrimas cantando uma canção popular, uma intensidade realmente litúrgica e que atinge o máximo quando os marinheiros começam a tirar os chapéus. Além disso, é marcante como detalhe humano o momento em que Cocky tira, entre dois soluços, uma baforada de seu charuto.
A segunda cena é a que põe frente a frente o ingênuo Ollie e Freda, a sórdida Freda, a Freda teatral mas grande Freda, Freda de tal. Ollie já tinha tentado ir embora, mas Freda, empurrada pelo Joe, acompanha-o até a porta e lá, Freda, transformada numa silhueta que tem mãos brancas e de carne, pede que Ollie tome alguma coisa para beber — e que pedido! — e Freda tem impulsos de retroceder diante do Mal, mas Freda não retrocede, e Freda tem remorsos.
Depois de esmagarem Nick, os marinheiros vão para o Amindra salvar Ollie, e realiza-se aquela magnífica e brutal luta no meio de latas negras de combustível que se entrechocam num rumor surdo. Dessa luta participa, e no mesmo plano que os homens, uma lanterna portátil. A cena final, em que Drisc é arrastado pelos pés, desacordado, os braços estendidos para trás, iluminado pela lanterna portátil, já então em mãos dos homens do Amindra, essa cena é digna das grandes imagens do realismo russo.
E naquele extraordinário cais ensolarado, cheio de papéis brancos soprados pela brisa, termina um episódio da longa viagem de volta, que continua, que não se acaba nunca.
Na indústria cinematográfica americana a divisão do trabalho, para facilitar a produção em série, está largamente desenvolvida. Um filme é uma obra de especialistas de cenário [roteiro], découpage, décors, montage, gags etc. A pessoa que tem a incumbência de supervisionar isso tudo, o produtor, é em geral um homem de negócios. O diretor fica pois com suas possibilidades extremamente limitadas. O diretor tem, na América, raramente, possibilidade de ser um criador, um realizador, como era na Rússia, na Suécia, e mesmo na França e na Alemanha. Nesses países o diretor, quando não é seu próprio cenarista [roteirista] e monteur [montador], que é o caso para a maioria dos filmes de Eisenstein e René Clair, intervém na intimidade de todos os ramos da produção.
Nos Estados Unidos, exceto para o caso singular de Charles Chaplin, só diretores com a personalidade de um Stroheim ou o prestígio de um King Vidor dos bons tempos é que conseguiam fazer essa intervenção. Mais modernamente, só John Ford conseguia uma certa liberdade para a escolha do cenarista, alguns atores etc.
No The Long Voyage Home Ford é não só o diretor, mas o produtor, o patrão. E o filme reflete autenticamente o criador, com todos os seus defeitos e incertezas, e todas suas admiráveis qualidades.
Para cenarista escolheu Dudley Nichols, que conhece de longa data, com quem já realizou, em 1930-1, Seas Beneath [Sob as ondas], Men without Women [Homens sem mulheres]; em 1933, Pilgrimage [Peregrinação]; em 1934, The Lost Patrol [A patrulha perdida]; em 1935, The Informer [O delator]; em 1936, The Plough and the Stars [Jornadas amargas] e The Hurricane [O furacão], e em 1939, Stagecoach [No tempo das diligências]. Com o cameraman Gregg Toland discutiu e estudou todas as tomadas de vista. Em pleno entendimento com James Basevi, com quem já trabalhou nas cenas do furacão do The Hurricane, realizou a tempestade do The Long Voyage Home. Dirigiu Thomas Mitchell, com quem já colaborara em The Hurricane e Stagecoach, John Qualen que já dirigira em Grapes of Wrath, John Wayne que tirou dos westerns para um papel em Stagecoach etc. E finalmente repartiu com Walter Wanger, o produtor de Stagecoach, as responsabilidades da produção de The Long Voyage Home.
Trabalhou com gente que já conhecia e que escolhera livremente. O resultado foi admirável e nos faz desejar uma chance idêntica para King Vidor, Fritz Lang, Mamoulian e mais alguns outros, para que se possa fazer uma ideia clara sobre a decadência desconcertante desses trabalhadores de imagens. É verdade que para quem tem sempre em mente o problema ainda não solucionado — cinema silencioso/cinema falado — um dos aspectos gerais da questão é bem conhecido.
O itinerário artístico de John Ford é muito longo, e diferente do da maioria dos velhos diretores de cinema. Ford começou a dirigir filmes em 1915, em pleno período de formação do cinema, atravessou toda a era clássica do cinema silencioso, entrou no período falado, e diferentemente de seus companheiros de jornada, o grande David Griffith à frente, que produziram o melhor de sua obra durante o período silencioso, Ford só em 1934-5 é que se destaca como um artista com uma personalidade, com um élan. Desse longo período de aprendizado não se sabe muita coisa, além do nome de alguns filmes que produziu. O crítico italiano Ettore Margadonna se interessou por um The Iron Horse [O cavalo de ferro], western realizado em 1924 que mostra a construção da primeira estrada de ferro no sertão norte-americano, e um Three Bad Men [Três homens maus] (1926), filme que se desenrola durante a “gold rush” [corrida do ouro] de 1877 na Califórnia. De qualquer maneira não são filmes catalogados.
John Ford provocou a atenção dos críticos em 1934-5 com três filmes: The Lost Patrol, The Whole Town’s Talking [O homem que nunca pecou] e sobretudo The Informer. O primeiro, a luta de um grupo de homens contra o deserto, a sede, o calor e os nativos, é um filme com bastante dignidade e simplicidade e guarda-se dele, saudosamente, a imagem de homens e cavalos matando sofregamente a sede numa poça de água encontrada num oásis. O segundo, que não conheço, parece ser uma comédia de quiproquós realizada com grande habilidade. Do The Informer, uma das obras mais importantes de John Ford, diremos alguma coisa num parágrafo abaixo.
Ultimamente, antes do The Long Voyage Home, tivemos dois filmes de John Ford, em 1939 Stagecoach e em 1940 Grapes of Wrath. O primeiro é um filme desigual em que se encontra do ótimo e do péssimo. O início é admirável, e os americanos que frequentemente sabem começar um filme raramente lançaram uma história tão bem como a dessa diligência cheia de passageiros heterogêneos (Mitchell, médico bêbado; Carradine, aristocrata jogador; Wayne, bandoleiro simpático; uma poule [prostituta] boa alma etc.) que devem viver juntos uma aventura cheia de perigos. Admiram-se ainda no desenrolar do filme alguns velhos temas do velho western, vivificados por um sopro novo, e as magníficas cenas finais da luta singular dos dois homens na rua mergulhada em completa escuridão. Detesta-se particularmente o episódio da cantoria na estalagem quando o filme, literalmente estrangulado, cai e para. No Grapes of Wrath, ficamos comovidos diante da dramática viagem do caminhão cheio de mulheres, crianças e homens sofredores, no meio dos quais surge a figura heroica da ma [mãe] Joad, essa extraordinária Jane Darwell, e diante da nobreza estranha dessas fisionomias esquálidas focalizadas de baixo. Grapes of Wrath é um filme que analisado com frieza no plano propriamente cinematográfico é simplesmente bom, mas que merece ter um destaque especial, devido ao fato de ser uma comunhão com os desgraçados do mundo.
No conjunto das obras de seu diretor, The Long Voyage Home deve ser colocado juntamente com The Informer e The Plough and the Stars entre os que poderiam ser chamados de tipos irlandeses de filmes de John Ford. Não vi The Plough and the Stars, com Barbara Stanwyck e Preston Foster, realizado em 1937. O físico Occhialini, um dos mais fiéis amantes do cinema que conheço, me informou que é o mais profundamente irlandês de todos três. A ação passa-se em plena revolução irlandesa de 1921. Trabalham nele Barry Fitzgerald e Joseph Kerrigan, respectivamente o Cocky e o Nick de The Long Voyage Home, ambos irlandeses.
The Informer é para mim, depois de The Long Voyage Home, a obra mais importante de John Ford. Admirei a atualmente rara unidade de desenvolvimento desse filme, a peregrinação pelos bares de Dublin do delator, encarnado em Victor McLaglen, cuja personalidade nunca foi melhor aproveitada; conheci Joseph Kerrigan, que nos apresentou aquela canalhice plástica que devia transformar-se, em The Long Voyage Home, na melhor do cinema americano; assisti a uma cena fúnebre, das cenas fúnebres de John Ford, quando o corpo do revolucionário irlandês morto (Preston Foster) é velado por sua família e pelos companheiros e entra o delator, o culpado daquela morte, que no meio do silêncio começa a dar pêsames aos gritos e deixa cair umas moedas cujo tilintar o reduz ao silêncio, e que têm um brilho estranho. Além disso é inesquecível aquele cartaz com o retrato do revolucionário e a promessa de um prêmio para quem o entregar à polícia, aquele cartaz que é levado pelo vento, tema querido de Ford, e que se cola às pernas do delator perseguido pelo remorso. Aceito mesmo o fim discutível, na Igreja, porque a sensação de Irlanda que se tem durante todo o filme continua até a última imagem.
No The Long Voyage Homea Irlanda também está sempre presente, nos atores, nos sotaques, nas músicas, nas canções, nas danças, na saudade da Irlanda, no Limehouse londrino, cuja fauna é predominantemente a dos bas-fonds de Dublin.
A alma profundamente irlandesa de John Ford exprime-se mais completamente e com mais liberdade em assuntos e atmosferas irlandesas. Demonstração de que o cinema é uma arte nacional — fundamento número um da Nova Arte.
Ainda duas questões:
1a — The Long Voyage Home não admite reações sentimentais no mau sentido. The Long Voyage Home é um filme másculo. A atitude do comandante do S.S. Glencairn, cortando a palavra ao armamentista toda vez que este queria fazer literatura com o perigo que os marinheiros iam correr, é uma advertência de caráter muito mais geral do que pode parecer à primeira vista.
2a — Deus, o Cristo, estão ausentes de The Long Voyage Home? Não creio. A vontade que têm todos aqueles homens que Ollie volte para casa, porque ele tem um lar, uma mãe, essa vontade nos coloca diante de uma comunhão e de uma solidariedade que nos foram ensinadas pelo Cristo.
Evidentemente, a prodigiosa riqueza da realidade dessa questão escapa desse esquema simplificado. Para aqui, entretanto, esse esquema serve. [N. A.]
O encouraçado Potemkin, de Serguei M. Eisenstein, realizado em 1924, obra-prima do cinema soviético. [N. A.]